sábado, 2 de janeiro de 2010

Do bom selvagem à selvajaria

Rousseau, no seu Discurso sobre a Origem da Desigualdade, descreveu o que ficou conhecido como o "mito do bom selvagem”: “Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas simples, enquanto se limitaram, servindo-se de espinhos de plantas e de espinhas, a coser o próprio vestuário de peles, a ornamentar-se com penas e conchas, a pintar o corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou a embelezar os seus próprios arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos de música; numa palavra, enquanto não se aplicaram senão a actividades que um isoladamente podia fazer e a artes que não necessitavam da colaboração de várias pessoas, viveram felizes, saudáveis, bons e felizes, tanto quanto podiam sê-lo por sua natureza e continuaram a gozar entre si das doçuras de um convívio independente; porém, desde o momento em que um homem teve necessidade da colaboração dos outros, a partir do instante em que se descobriu que a um só era vantajoso possuir provisões para dois, a igualdade desapareceu, introduziu-se a propriedade, o trabalho passou a ser tomado como necessário e as vastas florestas transformaram-se em agradáveis campos que foi necessário regar com o suor humano e nos quais se viu, de imediato, a escravatura e a miséria germinar e crescer de braço dado com as searas.”.

Nos dias que hoje vivemos, precisamos de começar a reescrever Rousseau porque os homens vivem mais do que em sociedade, empilham-se em grandes, desumanizadas e caóticas metrópoles, onde impera a lei do mais forte, o carácter dispensável dos mais fracos e o que faz carreira é o oportunismo mais descarado. Hoje, o homem já não trabalha para sobreviver, nem sequer para o bem comum, mas para manter o sistema. E como o sistema está tomado de uma voracidade insaciável, nada é suficiente: quanto mais trabalhamos, mais precisamos trabalhar e cada vez até mais tarde na vida. Ou seja, do mito do "bom selvagem" passámos à selvajaria quase total.

Mesmo assim, e apesar de o Governo anunciar cortes orçamentais anuais para quase tudo, o país gasta sempre mais do que consegue produzir e o défice das contas públicas é agora uma espécie de buraco negro com um diâmetro de proporções preocupantes que ameaça engolir tudo.

Queiramos ou não, com exageros ou sem eles, as imagens avassaladoras de Metropolis, de Fritz Lang, fazem cada vez mais sentido e, tal como em 1927, parecem prenunciar um futuro muito pouco risonho para a humanidade, ou melhor, parecem prenunciar que a própria humanidade, a continuar nesta via, não tem é grande futuro.

Thea von Harbou escreve na abertura: "This film is not of today or for the future. It tells of no place. It serves no tendency, party or class. It has a moral that grows on the pillar of understanding: "the mediator between brain and muscle must be the heart.". Talvez seja por isso mesmo que se tornou num filme de todos os tempos e lugares, com um argumento cada vez mais verosímil.


E depois, claro, há ainda o nosso inenarrável Presidente que, na mensagem de Ano Novo, vem dizer-nos para não termos medo. Medo de quê, exactamente? Do Lobo Mau? Do Capuchinho Vermelho? Ou da Bruxa Má?

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