domingo, 24 de janeiro de 2010

Ida ao teatro

Em Fevereiro de 1970, a revista Vida Mundial publicava a tradução de uma extensa entrevista de Jean-Paul Sartre ao periódico britânico “New Left Review”. À pergunta “Continua ainda a escrever peças de teatro?”, Sartre respondeu:

"Sim, porque o teatro é ainda outra coisa diferente. Quanto a mim é essencialmente um mito. Considere, por exemplo, um pequeno burguês que leva o tempo todo a discutir com a mulher. Se gravar as discussões, ter-se-á um documento não apenas sobre este casal, mas ainda sobre a pequena burguesia em geral e o seu universo, sobre aquilo que a sociedade fez destes burgueses, etc. Dois ou três estudos deste tipo bastam para tirar o valor a todo e qualquer romance sobre a vida de um casal pequeno-burguês. Em contrapartida, a imagem que das relações entre um homem e uma mulher nos dá Strindberg em «A Dança da Morte» não será jamais ultrapassada. O assunto é o mesmo, simplesmente está tratado ao nível do mito. O autor dramático apresenta às pessoas a eidos (forma ideal) da sua existência quotidiana; mostra-lhes a sua própria vida como se a estivessem vendo do exterior. Nisto residia o génio de Brecht. Brecht protestaria violentamente se alguém lhe dissesse que as suas peças eram mitos. E, no entanto, o que é a «Mãe Coragem» senão uma peça contra os mitos, transformada, embora contra-vontade, num mito?"

Um ano depois, em 1971, na Casa da Comédia, Jorge Listopad levava pela primeira vez à cena uma peça escrita por António Patrício em 1909 - O Fim, história dramática em dois quadros -, à qual assenta perfeitamente a explicação de Sartre sobre o que é o teatro: mostrar-nos a vida como se a estivéssemos a ver do exterior, neste caso particular, mostrar-nos até a (des)construção de alguns mitos e fantasmas do nosso imaginário colectivo:

"A Aia – E agora?...
O Desconhecido – Agora... Morreu a capital: há mais país. Triunfar pela vida ou pela morte, mas triunfar. Fomos iniciados.
A Aia – Triunfar ainda... é impossível.
O Desconhecido – Desde ontem a realidade é o impossível.
A Aia - Mas que esperança o trouxe aqui... ao Paço?...
O Desconhecido - Quero falar à Rainha, quero vê-la. Esteja como estiver... o que me importa! É o prestígio de um preconceito milenário, a ilusão que ele me dá de estabilidade, que eu preciso agitar nas minhas mãos, como um trapo hipnotizante, um espantalho. É a hora estranha de erguer mais os ídolos. Destruí-los é depois, muito mais tarde.
A Aia – Oh! Este já não tem que destruir. Um ídolo... a Rainha! Vai já vê-la. É menos que a memória de uma morta: a caricatura de um espectro, não sei quê!...
O Desconhecido – É uma forma ainda. Isso me basta. Tem ouropéis: mascara-se de símbolo. Transporta-se outra vez para o Paço Grande. Inventa-se uma heráldica... uma corte. Há criados aqui. Servem-nos esses. Tem-se assim um simulacro de realeza, a ficção teatral que ainda fascina. Nada mudou sob este aspecto, nada! E a alma do resto do país encadeia-se então ao rubro-branco nesta obsessão suprema: a autonomia! Se sobrevivermos... mais tarde... há outros destinos. Por agora: não desviar a atenção um só segundo, do podridero épico que vemos: receber-lhe a confidência axaltadora, a sugestão de loucura fulgurante, e arrastar o que na raça há de mais forte, numa vertigem lívida, ao triunfo, à vitória na vida, ou só na morte (apontando as janelas) como a desses que lá foram reinam..."
In O Fim, António Patricio, Quadro Segundo

Depois de ouvir Jorge Listopad contar como descobriu o texto de forma fortuita nas caves da Lello, no Porto, e, sobretudo, a aventura que foi encenar o texto em 71, já na vigência da designada «primavera marcelista», mas com o espectro da censura a pairar muito atento sobre tudo o que dizia respeito à cultura, não fossem os espíritos ficar ‘intoxicados’, assisti à representação da peça pelo Cendrev, juntamente com um punhado de gente embrulhada em mantas até ao pescoço (Listopad, ainda antes da peça começar pediu uma segunda manta e, a nós, não nos faltou vontade para fazer o mesmo, mas...), quase sentados ao colo uns dos outros para mantermos o pouco calor que os nossos corpos conseguiam gerar. Mesmo assim gostei: da peça (o texto tem uma força extraordinária), dos actores, muito em especial da Rainha (Rosário Gonzaga), da cenografia e da música.