terça-feira, 19 de janeiro de 2010

A modernização empresarial em três andamentos

1º Andamento: cliente iludido

 O pacato cidadão verifica com pesar que não consegue aceder à internet, pois o o seu modem jaz inerte. Carrega em vários botões, liga e desliga fios, confirma a alimentação electrica e nada. Decide ligar para um número dito de “assistência técnica 24 horas por dia” que, no papel, até soa bem. O problema começa logo após a marcação do dito. De imediato, arranca um sistema de atendimento automático que nos dá as boas vindas e começa a debitar opções: para activações prima 2, para facturação prima 3, para... Para mim, o melhor de tudo, é que no fim desta exaustiva lista, ainda nos dão a hipótese de sermos atendidos por um operador que fala inglês. Yesss! Quem for inexperiente nestas andanças julgará que, ao escolher uma destas opções, poderá finalmente desabafar os seus pesares com alguém. Só que não é bem assim. Ainda temos que premir mais umas quantas teclas até que, quando já começamos a duvidar de nós próprios, e quase por milagre, se ouve uma voz humana do outro lado da linha.

2º Andamento: cliente aturdido

 Ouvimos então, a um ritmo de verdadeira rajada verbal, algo como “bomdia,estáafalarcom .... emquepodemosajudá-lo”. E aqui, claro, voltamos a cair no logro da nossa boa fé, ao julgarmos que alguém da empresa de comunicações está realmente interessado em resolver o nosso problema o mais breve possível. Começamos a contar as nossas desventuras tecnológicas com detalhe, pensando que todos os pormenores podem ser relevantes e somos, de imediato, interrompidos por uma pergunta seca do tipo “pode dizer-me o seu nome, por favor?”. A partir daí somos sempre tratados muito formalmente por “Sra. Y”. Claro está que a inesperada interrupção nos deixa um tanto atordoados e perdemos o rumo às ideias e a sequência da dramática história. E é neste preciso instante que a situação se torna ainda pior, pois tem início um longo interrogatório que começa mais ou menos assim: “diga-me por favor, Sra. Y, se as luzes do modem estão ligadas e ou intermitentes, ou se estão a piscar a verde ou a laranja.”. (O problema é que, eu tinha começado logo por informar que o modem estava como morto.) E lá continua: “Já reiniciou?” (Ora eu tinha dito logo a seguir que nem sequer iniciava, como é que podia reiniciar?) Logo depois: “dê-me só uns minutos para verificar se tem ligação adsl a funcionar, por favor, não desligue o telefone”. Passados alguns minutos, que mais parecem uma eternidade (ainda por cima com uma música pirosa a escavacar-me os ouvidos): “obrigada, Sra. Y por ter aguardado enquanto fizemos o teste à sua linha, de facto, está activa.” E por aí fora, até que, esgotadas todas as hipótese do manual, a operadora reconhece que também não consegue resolver a situação e informa que vai passar a chamada a um colega da 'equipa técnica'. É então que voltamos ao princípio. Temos que repetir tudo de novo, excepto o nosso nome, o qual parece ser a única informação que o sistema de triagem foi capaz de registar. Chegados a este ponto, o cliente já se sente um tanto ou quanto estúpido e começa a questionar-se sobre a utilidade prática de tão alongado telefonema.

3º Andamento: cliente despachado

 O segndo operador, depois de ouvir toda a história pacientemente recontada (mais uma vez) e de fazer todos os testes que a colega anterior já fizera conclui que, afinal, também ele não é capaz de identificar a natureza do problema. E informa-nos, num tom algo agastado, que vai passar a chamada a um terceiro colega que, claro está, do nosso probema, só sabe que nos chamamos “Sra. Y” e, por isso, é preciso repetir pela terceira vez todos os passos do nosso drama tecnológico. Depois de fazer novamente todos os testes já realizados pelos seus antecessores e de chegar a idêntico resultado o técnico sugere-me que experimente o equipamento numa outra linha ou, em alternativa, experimente outro equipamento na linha. Embora ofuscada pelo brilho fulgurante desta ideia, atrevi-me ainda a perguntar onde é que ele sugeria que eu fosse arranjar idêntico equipamento, ou a tal outra linha para fazer a experiência. Segue-se uma pausa na conversa e ouço um suspiro, como de quem, já com as forças esgotadas por tão longa batalha, está prestes a capitular. Neste preciso instante, faz-se luz na minha cabeça: na loja, claro! O que resolveria o meu problema, e de vez, era um novo modem adquirido numa loja da especialidade!
 
Resolução dos problemas técnicos à parte, a grande lição a retirar desta história é outra e bem distinta. Percebi finalmente o que é, e como funciona uma “empresa moderna”: é a que, por todos os meios necessários, consegue convencer os seus clientes de que a única solução para qualquer avaria ou problema técnico é... adquirir um novo equipamento. Evitam-se chatices, contribui-se para aumentar as taxas de consumo interno e melhorar os indicadores económicos. É a que, com tal estratégia, promove também a permanente actualização tecnológica dos ditos clientes e garante ainda um excelente nível de satisfação pelos serviços técnicos prestados (afinal, com um equipamento novinho em folha, as hipóteses de haver avarias são bem menores). Por outro lado, como são empresas sem rosto - não falamos verdadeiramente com ninguém, e muito menos com alguém credível enquanto interlocutor – se ao cliente insatisfeito ou frustrado lhe apetecer ir reclamar de alguma também não pode, nem sabe como. A empresa tem sede num sítio e atende os sempre problemáticos clientes em call centers que ninguém sabe muito bem onde ficam. Poupa-se assim muito dinheiro à empresa, claro está. E, a julgar pelo número de empresas que, no nosso país, vai seguindo por esta via, acho que a modernização e a racionalização do tecido empresarial devem estar a dar passos largos. Só não percebi ainda é em direcção exactamente a quê? (e não sei se gostarei da resposta).