sábado, 23 de janeiro de 2010

Sobre o ensino e a aprendizagem da língua

Em “O que falar quer dizer”, publicado em 1982, Pierre Bourdieu aborda a língua e a linguagem na perspectiva das ciências sociais, isto é, a língua como instrumento de (de)marcação social e de poder. Fala também daquilo que designa como “língua legítima” e que descreve assim: “é uma língua semiartificial que deve ser submetida por um trabalho permanente de correcção, o qual compete simultaneamente a instituições especialmente criadas para esse fim e aos falantes individuais. Por intermédio dos seus gramáticos, que fixam e codificam o uso legítimo, e dos seus mestres, que a impõem e inculcam através de numerosos acções de correcção, o sistema escolar tende, nesta matéria como noutras, a produzir a necessidade dos seus próprios serviços e dos seus próprios produtos, trabalho e instrumentos de correcção.” (p. 46)

Ainda a propósito da escola e da aprendizagem, escreve, na pág. 39, que “O custo de formação não é uma noção simples e socialmente neutra. Engloba – em grau variável segundo as tradições escolares, as épocas e as disciplinas – despesas que podem ultrapassar grandemente o mínimo «tecnicamente» exigível para assegurar a transmissão da competência propriamente dita (se é que é possível dar uma definição estritamente técnica da formação necessária e suficiente para cumprir uma função e da própria função...). Como exemplo de “uma boa medida do custo económico da formação”, o autor refere a duração da escolaridade, a qual “tende a ser valorizada em si mesma e independentemente do resultado que produz”, o que tem levado ao progressivo alongamento da permanência dos alunos na escola. Isto significa que, para nós, “a qualidade social da competência adquirida, que se marca (…) pela maneira de realizar os actos técnicos e de pôr em acção a competência, aparece como sendo indissociável da lentidão da aquisição, sendo os estudos curtos ou acelerados sempre suspeitos de deixar nos seus produtos as marcas da forçagem ou os estigmas da repescagem.”.

Bourdieu conclui o seu raciocínio dizendo que “este consumo ostentatório de aprendizagem (ou seja de tempo)” preenche “as funções sociais de legitimação, entra no valor socialmente atribuído a uma competência socialmente garantida”, ou seja, está implícito na certificação dos alunos no final do percurso escolar. Não é nada difícil transpor este “retrato” para a realidade actual do nosso ensino. Podemos até acrescentar ao “custo técnico” da formação o programa de modernização das escolas, agora em curso, uma vez que estão a ser gastos milhões em obras e equipamentos ultra-modernos: computadores, quadros interactivos, acessos à rede global e criação de redes internas, software didáctico avançado, novos laboratórios e salas de aula mais adequadas, etc.

Contudo, dez páginas à frente, Pierre Bourdieu escreve que “tal como a sociologia da cultura, a sociologia da linguagem é logicamente indissociável de uma sociologia da educação”. Por isso, considera que “o mercado escolar está estritamente dominado pelos produtos linguísticos da classe [social, cultural e politicamente] dominante e tende a sancionar as diferenças de capital preexistentes: o efeito acumulado de um fraco capital cultural e da fraca propensão para o seu aumento através do investimento escolar que lhe é correlativa, condena as classes mais desfavorecidas às sanções negativas do mercado escolar, ou seja, à eliminação ou à auto-eliminação precoce na sequência de um êxito fraco. Os desvios iniciais tendem, portanto, a ser reproduzidos”, já que “(…) os menos dotados e os menos aptos a aceitar e a adoptar a linguagem escolar”, são “também aqueles que menos tempo são expostos a esta linguagem e aos controlos, às correcções e às sanções escolares.” (p. 48)

Ora é justamente aqui que, para mim, continua a estar o grande busílis. Trinta e seis anos depois do 25 de Abril, depois de várias grandes “reformas” do sistema educativo, de tanta obra escrita em bom eduquês com receitas certeiras para resolver os problemas da educação, de tanto decreto alterado, acordado, (re)negociado e até, pasmemo-nos, repristinado, de tanta bordoada nos professores, verifico sem qualquer dificuldade que a “escola inclusiva”, a “escola para todos, a “mais escola e melhor escola”, a “escola de qualidade”, mais não é, afinal, do que demagogia com que entreter o povo à hora do telejornal.

É que, na verdade, lá bem no fundo do que é essencial, tudo continua na mesma, pois não há forma de a escola e os professores atenuarem o fosso social e cultural entre os mais desfavorecidos e os mais bafejados pela riqueza. E não há forma porque não é à escola que compete fazer tal coisa. É aos políticos que andam por aí a fingir que nos governam, enquanto nós fingimos que acreditamos ser governados por eles, que compete essa tarefa. Isso é que nenhum ministro ou ministra, de primeira, quinta, décima quinta ou sem nenhuma categoria, conseguiu fazer até hoje. Contra isso não há quadro interactivo nem software avançado que nos valha. Contra isso, infelizmente, não há professor, por melhor profissional que seja, que possa fazer grande coisa, nem que os alunos fiquem trinta anos na escola.