domingo, 10 de julho de 2011

Algo do estilo "na cama com", mas sem...

Li no jornal que escritores portugueses e brasileiros têm sido convidados para passar uma noite naquele que foi o quarto de Fernando Pessoa durante 15 anos, até à sua morte, e que agora se designa "Quarto do Desassossego". Segundo Inês Pedrosa, actual directora da Casa Fernando Pessoa, há até já uma lista de espera que integra numerosas personalidades...

Fotografia de Rui Gaudêncio, In P2, 8/7/2011
O quarto, incluindo o mobiliário, é sobretudo uma reconstrução feita pelos técnicos da Casa. Apenas a famosa cómoda onde escrevia de pé e as estantes vazias são originais. Até a arca que também lá se encontra é uma cópia. A insólita iniciativa tem como objectivo a recolha de textos escritos a propósito ou a pretexto da noite passada no quarto de Pessoa, os quais serão reunidos num volume a publicar talvez no próximo ano.

A iniciativa, pelas suas características, recorda-me aquele famoso programa televisivo que, no início da década de noventa, lançou a actriz Alexandra Lencastre para a ribalta mediática. Chamava-se "Na cama com..." e pretendia ser uma nova forma de fazer entrevistas em televisão. Os convidados, semi-deitados sobre uma cama ao lado da apresentadora vestida com requintada lingerie, revelavam perante as câmaras as mais diversas atitudes e reacções - pudor, malícia, divertimentimento, à-vontade, constrangimento - enquanto iam respondendo a perguntas. Seria o conteúdo dessas entrevistas mais relevante devido à insólita situação em que elas ocorriam? Nunca se deu por nada.

Acho que se passa algo de muito idêntico com estes hóspedes de ocasião instalados no quarto de Fernando Pessoa: os que já lá dormiram - João Gilberto Noll, Lúcia dal Farra, valter hugo mãe e Jaime Rocha -  relatam a estranheza, o pudor ou a incomodidade de uma cama demasiado exígua para os padrões actuais. valter hugo mãe conta até que, logo pela manhã, foi apanhado ainda de pijama no quarto por um grupo de visitantes. Todos falam também do forte impacto causado pelas palavras do poeta que, em tamanho grande, enchem as paredes do quarto. O que não é nada de estranhar, uma vez que elas são o verdadeiro legado do poeta.

Não consigo sequer imaginar o que raio pode este tipo de "eventos" acrescentar ao valor intrínseco de uma obra como a de Fernando Pessoa. Nem como é que dormir uma noite na sua suposta cama vai contribuir para uma melhor compreensão da vastíssima e complexa obra do poeta, que é, afinal, o que verdadeiramente importa e aquilo que, supostamente, a Casa Pessoa deveria celebrar e afirmar.  Ainda que estas dormidas sejam apenas o pretexto para solicitar aos convidados a produção de um texto de forma absolutamente graciosa, não me parece que a noite mais ou menos bem dormida no quarto de Pessoa acrescente grande coisa à qualidade final do dito texto. E os autores convidados não aceitariam o convite para escrever o texto sem uma dormida em troca?

Queixa-se até a directora da Casa Pessoa de falta de verbas para poder convidar mais gente a passar lá uma noite. Face à crise financeira que estamos a atravessar, será que o próximo passo é alugar o quarto para noites de núpcias ou para turismo de habitação com carácter mais cultural e preço adequado?

Depois de ler o artigo fiquei a pensar: e o que diria o próprio Fernando Pessoa de uma iniciativa como esta? Palpita-me que se limitaria a encolher os ombros e a prosseguir o seu caminho, indiferente à agitação que lhe invadiu a casa, pensando talvez, com a fina ironia que o caracterizava: Ninguém me dirá quem sou nem saberá quem fui* nem sequer dormindo comigo, quanto mais na minha suposta cama (digo eu).

*Livro do Desassossego

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