segunda-feira, 4 de julho de 2011

Ficção científico-linguística

Convidado  a antever como poderá ser a língua portuguesa daqui a precisamente cem anos, em 2111, Manuel António Pina escreveu o seguinte:  "... não se me afigura que o quotidiano linguístico seja de natureza substancialmente diferente do que vai já progressivamente sendo hoje. Talvez apenas características já actualmente reconhecíveis se alarguem e aprofundem, como a erosão, como o desenvolvimento e a generalização de alternativas "gráficas" (no sentido anglo-saxónico da palavra) ao livro, da importância e "valor" (isto é, do "crédito") da palavra escrita. Acho, porém, que a notícia da morte do livro é talvez um pouco exagerada. Imagino que acontecerá com o livro algo semelhante ao que aconteceu quando, com o aparecimento da fotografia, foi anunciada a morte da pintura, com o aparecimento do cinema foi anunciada a morte da fotografia ou com o aparecimento da televisão foi anunciada a morte do cinema: verificar-se-ão ajustamentos mais ou menos conflituais, mas continuará a haver lugar para todos (...).

As línguas nacionais serão cada vez mais aceleradamente influenciadas pelas versões mais simples e lementares - vocabulário, construção, estrutura gramatical - da língua franca do comércio internacional, da cultura pop e da tecnologia, que é o inglês. Línguas emergentes na economia e comércio internacionais como o chinês podem ter semelhante papel no prório inglês, tanto quanto o inglês vai já tendo nelas. Como na generalidade de outros países, os jovens portugueses falam já hoje, no dia-a-dia, um português cheio de vocábulos ingleses aportuguesados, alguns dos quais já com lugar nos dicionários. Seguidamente virão construções linguísticas completas e, então, falar-se-ão, por um lado, na rua e, por outro, em meios linguísticos específicos (económico, tecnológico, científico, talvez artístico) idiolectos que poderíamos, à maneira do "franglais" de Etiemble, designar por "portingleses".

Mas, mais importante, o português, como outras línguas nacionais, será decerto profundamente enriquecido com palavras e construções linguísticas novas, que é o mesmo que dizer que com novas maneiras de perceber o mundo e de se relacionar com ele. Durante muitos séculos, a guerra e as ocupações militares foram os principais veículos das trocas linguísticas entre os diferentes povos e culturas que asseguraram a vitalidade das línguas faladas. Hoje, e no decurso dos próximos 100 anos certamente também, o comércio, as tecnologias, o turismo e a cultura desempenharão esse papel de uma forma intensa e constante.

E em 2111 os netos dos nossos netos falarão provavelmente um português contaminado pelo vocabulário inglês e pelos das principais línguas da imigração, ao mesmo tempo que pelas pronúncias brasileira e africana, mais rico, mais dúctil e tão mutante quanto então for, e será de certeza, a própria realidade comunicacional e cultural." (Pública, 5/6/2011)

Estou de acordo com tudo mas, como Manuel António Pina não é professor do ensino secundário e, portanto, não tem que ver testes nem exames nacionais como eu e os meus colegas, talvez esteja aqui a desvalorizar o factor "erosão", que refere no início do texto e que certamente modificará e muito a grafia do português.

A julgar pelo que leio nos textos dos alunos, parece-me que, cada vez mais, os falantes jovens têm tendência para escrever como falam. As causas são muitas e não são para aqui chamadas. Também não vale a pena enfiar a cabeça na areia e fingir que não as vemos porque elas estão mesmo à nossa vista em qualquer mural do facebook, na net e na própria blogosfera, sobretudo nos comentários. E esta espécie de grafia mais fonética - pela erosão que provoca nas regras ortográficas, na sintaxe e na morfologia - virá certamente a ter grande influência na evolução linguística a médio prazo. Aliás, quando penso no (des)acordo ortográfico que já está em vigor e o comparo com os textos de muitos alunos, dá-me vontade de rir. É que estes novos  falantes da língua (em termos etários, claro) vão já bem mais longe do que o mal amanhado acordo. E, a par da influência anglo-saxónica, será essa profunda alteração das regras da escrita que levará também à maior evolução da língua portuguesa.

Sem comentários: