sábado, 16 de julho de 2011

Chamemos-lhe acordês

Os maus resultados nos exames nacionais de português têm sido pretexto para diversas reportagens nos telejornais. Ainda há bocado uma jornalista questionava jovens na rua – incluindo um estudante do ensino superior – sobre a ortografia de palavras como infelizmente, rixa ou assessor. Ninguém conseguiu acertar uma. Isto talvez espante o público, mas não chegará sequer para pôr um sorriso amarelo na cara dos professores que corrigiram provas e que se depararam com coisas trinta vezes mais graves. Porém, talvez dê para explicar melhor aos que não são professores e nunca viram ou corrigiram uma prova de exame, como é que chegamos aos desastrosos números que todos os anos são divulgados.

Sobre as verdadeiras causas desta situação muito tem falado e escrito a professora Maria do Carmo Vieira: desadequação dos programas curriculares, aliada à falta de exigência e de rigor do sistema de ensino, tudo agravado pela falta de trabalho e de estudo por parte dos alunos. Trabalha-se demasiado para as metas quantitativas que cada escola definiu e tem de cumprir e para ocupar os alunos durante o maior número de horas possível e não para que eles aprendam mais. São essas as exigências do sistema educativo que temos actualmente. O problema é que os decisores políticos não querem ouvir.

No caso específico da língua portuguesa, há ainda uma outra questão a ter em conta: o acordo ortográfico. A partir do próximo ano lectivo, ele entrará em pleno no quotidiano das escolas e os alunos que, agora, não sabem escrever palavras tão simples como “infelizmente”, “rixa” ou “assessor, porque não aprenderam as regras necessárias para o poderem fazer, vão ser confrontados com um conjunto de novas normas ortográficas que os vai confundir ainda mais.

Claro que andam por aí uns adeptos do acordo a proclamar que não é nada de mais, apenas se elimina o «c antes do t», que se devia ter ido ainda mais longe e, para provar que têm razão, até já pronominalizam à brasileira quando escrevem para ficar mais bonito (coisa que não faz parte do acordo). No fundo, a maior parte destes argumentos em defesa da suposta simplificação que o acordo introduz não passam de uma série de equívocos, simplistas ainda por cima. Acho-os sobretudo interessantes quando vêm da parte de quem aprendeu a escrever português ainda no tempo em que se estudava gramática a sério na escola e se tinham que saber, por exemplo, os verbos de cor, ou fazer cópias e ditados, e depois se levava como trabalho de casa a tarefa de escrever 50 vezes as palavras em que se se tinham dado erros. Tudo coisas impensáveis no contexto das novas pedagogias. A esses, a nova ortografia não faz qualquer confusão. Pois pudera! Ainda assim, julgo que as novas regras ortográficas não deixarão de motivar algumas incongruências, mesmo em gente tão «à frente» na coisa. É que foram rápidos a eliminar o tal c antes do t, mas esquecem-se, por exemplo, de tirar o acento nas palavras graves com o ditongo tónico «oi» (asteroide, por exemplo) ou até nas palavras graves em que o acento era o que as distinguia de outras com idêntica grafia (pára/para, agora é para e pronto) e a hifenização também não sai lá muito bem.

A este propósito, o jornalista Nuno Pacheco escreveu no “Público” um texto absolutamente canónico e que a todos devia servir para uma reflexão séria sobre esta questão:

“Há dias, na televisão, duas doutas meninas diziam, sorridentes, que os professores estão “inevitavelmente receptivos” ao Acordo Ortográfico (AO). Não espantaria se dissessem, em seguida, que os antigos condenados também estavam “inevitavelmente receptivos” ao patíbulo. O sorriso nos seus rostos dizia tudo. (…) O pior virá quando as doutas meninas tiverem de enfrentar as pequenas feras da sua aula. “S'tôra, porque é que quem nasce no Egito se chama egípcio e não egitiano?” Ou: “Porque é que eu escrevo concessão e leio concessão e escrevo conceção e leio concéção? E porque é que temos de escrever conceptual se conceção [a palavra mãe] não tem p?” “O que é corréu, é alguém que corre muito e foi parar ao tribunal por causa disso?” E logo as meninas, inevitavelmente “recetivas”, dirão: “Cale-se, menino. É assim mesmo, é a lei.”

Com o passar do tempo, porque a ortografia serve a fonética, sinalizando os vãos e desvãos da fala, ouviremos coisas destas: “A menina vai ao esp'táculo?” “Não, q'rido, o âtor é pouco conc'tico e o esp'táculo tem pouca âção, uma má persp'tiva. E os bilhetes são para um s'tor péssimo, não se vê nada.” “Mas ao menos vai à reçe'ção antes, não?” “O quê, com aquelas coisas penduradas no têto, com a sala com aquele aspêto? Vá sozinho, tenho outras opções.” “Opções? Mas esse pê não é contra a nova ortografia?”

Em 1998, num interessante ensaio intitulado Que futuro para a língua portuguesa em África?, o emérito africanista Manuel Ferreira escrevia que “os Cinco [países africanos] partiam do princípio de que a língua é um facto cultural”, transformando o português no plano da oralidade e no plano da escrita”. Para ele, o futuro seria assim: “A língua não é de nenhum para ser de todos. Não há por conseguinte um patrão. Todos são patrões. E se há uma língua, que é a língua portuguesa, há várias normas e logicamente umas tantas variantes: a variante da Guiné Bissau, a variante de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, a variante de Angola, Moçambique, do Brasil, da Galiza, de Timor Leste, a variante de Portugal.” Isto escreveu um homem culto e inteligente.
(…)
Quando Olavo Bilac escreveu que a língua portuguesa era a “última flor do Lácio, inculta e bela”, sendo “a um tempo, esplendor e sepultura”, adivinhava a propensão dos vindouros para a sepultura (a unificação falsa) em detrimento do esplendor (a diversidade óbvia, respeitadora das diferenças evolutivas). Assim está a flor do Lácio moribunda, porque a fizeram rejeitar todas as suas filhas legítimas (aquelas de que falava Manuel Ferreira) e trocá-las por um bastardo analfabeto. Porque não é português de Portugal (o europeu), nem do Brasil (essa variante viva e criativa), nem das Áfricas ou longínquos Orientes. Chamemos-lhe acordês, mescla intragável a que nunca estaremos “recetivos”. (In P2, 4/7/2011)

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