A propósito do belíssimo romance "Adoecer" de Hélia Correia, já muito eu escrevi aqui sobre Dante Gabriel Rossetti e a sua musa Elizabeth Siddal. E hoje, ao folhear a "antologia pessoal" de Manuel António Pina, "Poesia, Saudade da Prosa" (Assírio & Alvim, 2011), deparei-me com o seguinte poema:
The house of Life
Como Rossetti resgatando a dádiva de amor
verso a verso ao corrupto corpo
de Elizabeth Eleanor, o escritor
é um ladrão de túmulos. E é um morto
dormindo um sono alheio, o do livro,
que a si mesmo se sonha digerindo
sua carne e seu sangue e dirigindo
a sua mão e o seu livre arbítrio.
Quem construiu a sua casa? Quem semeou
a sua vida, quem a colherá?
Nem a sua morte lhe pertence, roubou-a
a outro e outro lha roubará.
Toma, come, leitor: este é o meu corpo,
a inabitada casa do livro,
também tu estás como ele, morto,
e também não fazes sentido.
"The house of Life" é também o título do mais significativo livro de baladas e sonetos de Dante Gabriel Rossetti, publicado em 1881. Inicia-se, justamente, com um magnífico poema que constitui uma verdadeira "Arte Poética" e metalinguística sobre o soneto:
A Sonnet is a moment's monument,
Memorial from the Soul's eternity
To one dead deathless hour. Look that it be, Memorial from the Soul's eternity
Whether for lustral rite or dire portent,
Of its own arduous fulness reverent:
Carve it in ivory or in ebony,
As Day or Night may rule; and let Time see
Its Powering crest impearled and orient.
A Sonnet is a coin: its face reveals
The soul,--its converse, to what Power 'tis due:--
Whether for tribute to the august appeals
Of Life, or dower in Love's high retinue,
It serve, or, 'mid the dark wharf's cavernous breath,
In Charon's palm it pay the toll to Death.
A rede de palavras, acasos e coincidências que é afinal a literatura - espelho de tudo quanto nós também somos -, bem como a sua capacidade de (des)organizar o pensamento e os (pre)conceitos é o que mais me cativa enquanto leitora e enquanto pessoa.
E são também estes momentos de verdadeiro achamento do que anda disperso por ai nas folhas dos livros, misturados com o que está guardado na minha cabeça, que me aligeiram por instantes a tarefa de empurrar pela encosta acima o pesado e rosnante calhau da rotina. Sendo o poema uma moeda, como escrevia Rossetti, certo é que já ganhei a noite, ainda que, do ponto de vista de Pina, talvez nada disto tenha muito sentido. Como a própria vida, afinal.
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