terça-feira, 26 de julho de 2011

"Carta ao futuro" sobre os dias de agora

William M. Davis (1829-1920), A Canvas Back, s.d.
Meu amigo:

Escrevo-te para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos... É quase certo que esta carta te não chegará às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. (...)

Toda a vida que se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final. A máscara que nos defende não tanto contra os outros como contra nós próprios (porque se nós a montamos não é tanto para que os outros nos identifiquem por ela, como para que nós acabemos de por ela nos identificarmos), essa máscara que é de comédia ainda quando de tragédia, é bem vã nos instantes derradeiros de qualquer situação, porque então os olhos que nos vêem não nos vêem de fora mas de dentro. (...)

Quem nos define a vida e a pessoa que não somos? A vida e a pessoa que estamos sendo é única e sem margens. (...)  (...) A evidência que nos resiste é a de que a vida é um valor, porque é a própria essência da terra toda e dos céus, e a de que é o sabê-lo que salva essa vida para a vida: é ao nosso olhar humano que existem as pedras, os astros, os cães... A nossa pequena glória é responder à grandeza do que foi grande e morreu com o pequeno valor surpreendido entre os escombros. (...) A vida, o seu preço e grandeza, nós os reconhecemos nos limites que nos couberam. (...)
Tenho apenas esta vida para viver, e seria quase uma traição que eu faltasse à sua entrevista - essa entrevista combinada desde toda a eternidade. Por isso eu a procuro à minha vida, em toda a parte onde sei que ela me espera com uma palavra a dizer. (...)


Évora, Dezembro de 1957

Vergílio Ferreira, Carta ao Futuro, Quetzal, 2010

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