domingo, 17 de julho de 2011

Revisitar o passado fechado numa caixa

Há anos que uma velha caixa de cartão cheia de fotografias e de negativos estava arrumada na estante juntamente com os livros. Seguramente há mais de quinze anos que não lhe mexia. Sempre tive um partis pris contra as fotografias (minhas, entenda-se) e, por isso, tenho muito poucas. Da infância não tenho senão uma ou duas, daquelas tipo passe, a preto e branco, e até essas são demasiadas. Nunca gostei de (re)ver o que nelas ficou plasmado para sempre.

No entanto, a necessidade de reorganizar as estantes para acomodar os livros que se têm amontoado ditou a decisão de abrir a caixa e de rever as imagens que lá estavam guardadas, no intuito de fazer uma "limpeza radical". Foi um revisitar de sítios e de acontecimentos: a queima das fitas partilhada com a amiga de sempre que foi também colega de curso, o mês de agosto de 91 quando, concluída a licenciatura, andei entre entre Braga e Bragança com direito a uns fresquíssimos banhos nas águas geladas do rio Homem; São, na sua maioria, imagens de pequenas viagens que fiz há quase duas décadas: Paris, Londres, Madrid e Barcelona, logo nos primeiros anos da carreira; algumas festas escolares e visitas de estudo, rodeada por adolescentes risonhos e despreocupados. Certas imagens são de sítios cujos nomes já esqueci, lugares perdidos na vastidão da planície por onde passei durante alguns fim-de-semana passados na companhia de colegas e amigos que, entretanto, perdi de vista por imperativos da vida e da profissão. Observo depois aqueles rostos de há quinze, vinte anos atrás: a vivacidade dos olhares, os sorrisos rasgados no rosto, um ar “leve”. Só agora, ao rever as imagens, percebi bem até que ponto tudo nos parecia, de facto, possível e ao nosso alcance. Não pode ter sido por acaso que aquelas imagens plasmaram dias de sol, pequenos lugares bucólicos debaixo de límpidos céus azuis, ruas tranquilas por onde caminhámos, mesas à volta das quais nos sentámos e mantivemos animadas conversas, enquanto apreciávamos a boa comida e o melhor vinho. Dei ainda comigo mesma, “apanhada” em apenas meia dúzia de retratos, com um brilho no olhar que hoje já não existe. Por instantes, as sonoras risadas que as imagens reproduzem invadem-me a lembrança. Mas tudo aquilo está agora tão distante que parece ter sido numa outra vida. Tão distante que esta vida de hoje me parece, de repente, resultar de um qualquer erro de identidade, ocorrido sem que ninguém se tenha apercebido, nem sequer eu.

E depois a mais temida analepse. O rosto quase irreconhecível da minha mãe em escassa meia dúzia de imagens. Aquele cabelo apenas grisalho parece-me hoje quase estranho: terá ela alguma vez sido assim, tão nova? Só a tristeza e as primeiras marcas da amargura espalhadas no rosto me são familiares. Não há na caixa uma única fotografia dela a sorrir de forma mais espontânea, apenas breves sorrisos apenas esboçados. Também o rosto distinto, ainda portador de uma assinalável beleza, da nossa amiga Lala que foi inequivocamente a minha mentora na descoberta e na partilha do requinte e do bom gosto. Sem estranheza, não encontrei uma única imagem do meu pai: a ausência foi sempre a sua forma de estar. Fechei a caixa, sem ter conseguido rever todas as fotografias. Fi-lo, antes que o impulso de deitar fora os vestígios do passado fosse demasiado forte para poder ser reprimido. Por isso, recoloquei-a na prateleira e declarei-a como tabu por mais algum tempo.

Só espero que as ainda mais escassas imagens que guardo dos tempos actuais possam, daqui a uns dez ou quinze anos, parecer-me menos dolorosas pois, a julgar pelas fotografias que a minha mãe um dia guardou numa caixa de cartão e que hoje revisitei, talvez o tempo tenha mesmo essa estranha e reconfortante capacidade de adoçar um pouco as memórias. Mal posso esperar...

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