sábado, 27 de março de 2010

Permanência dos mitos em viagem para dois

Na Inglaterra de finais do séc. XIX os pintores pré-rafaelitas desafiaram as convenções e formalismos da tradição académica de influência clássica, que então marcavam tanto a arte como a literatura. Essa verdadeira irmandade era constituída por nomes como John Everett Millais, William Holman Hunt, Walter Deverell, Edward Burne-Jones, William Morris e Dante Gabriel Rossetti, entre outros. Por mais estranho que isso nos possa parecer hoje, todos tinham em comum uma mulher: a musa, pintora e poeta Elizabeth Siddal.

Dotada de uma beleza muito própria e senhora de uma cabeleira ruiva e indomável, Lizzie Siddal despertou paixões e ódios ao longo da sua vida. Era uma mulher enigmática, que fascinava e, ao mesmo tempo, assustava os homens: “O erotismo que emanava dela não era um erotismo directo, não era a carne que falava. Era de tal modo embrulhado em mito, o do cabelo vermelho, e inspirado pela distância, tão grande, que os homens, para entenderem, para continuarem a viver no mesmo meio, se consolavam em afirmar o oposto: que era frígida, que não era tão bela quanto isso, que era muito magra, antipática, mal-educada. É a reacção masculina a um feminino que é misterioso, e que tem uma coisa irritante para os homens: ela não quer saber deles. (...) Lizzie é completamente indiferente ao que pensem, ao que sintam os homens. Só lhe interessava a arte, o envolvimento poético e mítico daquela relação, e o Gabriel Rossetti.”.

Numa sociedade ferozmente classista, a antiga empregada de chapelaria, pobre e, ainda por cima, orgulhosa, era vista por muitos com desconfiança e desprezo. A única esperança de redenção social para mulheres assim estava, à época, na instituição do casamento e na domesticação social que, forçosamente, se lhe seguia. Ora Lizzie e Gabriel “quebram as convenções, vivem juntos um amor não legitimado aos olhos da sociedade.”. A tornar tudo ainda mais difícil estava a doença de que sofria e que nunca foi bem explicada: tuberculose ou neurastenia e “mal de vivre” finissecular, somatizados e agravados pelo láudano que tomava com frequência? Nunca se saberá ao certo.

O que se sabe é que Siddal “Nasceu no sítio errado, e provavelmente nunca teria encontrado um sítio certo para nascer”, por isso viveu duplamente dilacerada pela mesquinhez de uma sociedade incapaz de a aceitar ou compreender e pela própria relação amorosa com Rossetti, “Porque é uma relação que não tem a ver com o tempo, não tem a ver com a convenção, que não tem a ver com os outros, e que tem um tal peso de destino que provoca depois em Gabriel a vontade (...) de ser um homem livre daquela sombra que não o abandona”. No fundo, “O corpo dela deteriorava-se na lânguida neurastenia do século XIX usando a doença como arma de sedução, enquanto Rossetti enlouquecia lentamente.”
"Beata Beatrix", Dante Gabriel Rossetti, 1872

Dante Gabriel Rossetti escreveu também poemas num caderno que foi enterrado nos cabelos ruivos da sua musa quando esta morreu, em 1862. Mais tarde arrependeu-se e ordenou a Charles Howell – que era descendente de portugueses – que abrisse a sepultura para o resgatar. Mas dele restava apenas uma folha, actualmente na British Library, guardada numa sala reservada e a que só se tem acesso com permissão escrita do British Council (ver aqui). O mesmo acontece com as cartas que ambos trocaram. O soneto resgatado à sepultura de Siddal em 1869, mas escrito em 1848, intitula-se "Another Love":

Of her I thought who now is gone so far:
And, the thought passing over, to fall thence
Was like a fall from spirit into sense
Or from the heaven of heavens to sun and star.
None other than Love's self ordained the bar
'Twixt her and me; so that if, going hence,
I met her, it could only seem a dense
Film of the brain,—just nought, as phantoms are.
Now when I passed your threshold and came in,
And glanced where you were sitting, & did see
Your tresses in these braids and your hands thus,—
I knew that other figure, grieved and thin,
That seemed there, yea that was there, could not be,
Though like God's wrath it stood dividing us.

Inúmeras biografias de Elizabeth Siddal foram escritas ao longo do tempo: umas focam mais a sua relação amorosa com Gabriel Rossetti, “diferente de todos os cânones que possam aplicar-se”, pois “Os comportamentos dos dois são ininteligíveis, enigmáticos, fazem quase desesperar. Não aceitam nenhum contexto.”. Outras focam mais “o papel daquela mulher que foi a grande modelo do tempo”, “disputada e pintada por muitos, rejeitada por outros.”. Não há contradição entre elas, pois Siddal “fornece material para todas as interpretações. E, no entanto, mantém-se sempre enigmática.”.

Logo que a conheceu, John Everett Millais ficou fascinado pela sua beleza e decidiu pintá-la num cenário de narcisos. Ainda “Não sabia que estava a vê-la morta.” Millais pintou “Ofélia” em 1851-52. Nele está retratado o túmulo de água da personagem suicida do “Hamlet” de Shakespeare. Como diz Jaime Rocha, é “um quadro necrofilo: há aqui uma anunciação, uma beleza. Tem uma luz de vida, tudo isto é vida e morte ao mesmo tempo.”.

"Ofélia", John Everett Millais,1851-52


(É neste passo que as pessoas “sensíveis” começam a ficar horrorizadas. Que mórbida! E que eu contraponho que, muitas delas, contudo, têm as paredes lá de casa decoradas com naturezas-mortas, feitas com cadáveres de animais diversos, especialmente caça, e muito prezadas pela tal corrente académica da arte ocidental, contra a qual os pré-rafaelitas tanto se rebelaram. Enfim, sensibilidades...)
Certo é que a imagem de “Ofélia”, assim como a da própria mulher que lhe serviu de modelo, se tornaram verdadeiros ícones culturais e artísticos, cuja ressonância se faz sentir ainda hoje. Apenas dois exemplos:
1. O videoclip da canção “Where the wilde roses grow”,de Nick Cave em parceria com Kylie Minogue, retomou nos anos 90 a iconografia necrofila de “Ofélia” em tom doce (voz) e amargo (letra):


2. Também o filme “A amante do tenente francês” retratou, nos anos 80, a hipócrita e puritana sociedade inglesa de finais do século XIX e a violenta repressão de todas as manifestações sensuais explícitas por parte das mulheres, que eram ainda violentamente ostracizadas quando transgrediam as regras estabelecidas. A profusa e rebelde cabeleira ruiva da personagem principal, representada por Meryl Streep, surge como um eco da de Lizzie Siddal:


Foi nos anos 70, quando ainda frequentava o liceu e nele recebia a canónica formação de matriz românico-francesa (como era norma na época), que Hélia Correia descobriu a imagem de “Ofélia” pintada por Millais. Enviou de imediato a imagem a Jaime Rocha, que então vivia em França. O fascínio levou-a, primeiro, à obra que esteve na origem do quadro: “Hamlet” de Shakespeare. Depois, fora de qualquer constrangimento académico, partiu à descoberta da cultura anglófila de finais do século XIX. Um dia, por acaso, leu uma biografia do pintor Dante Gabriel Rossetti e descobriu a sua extaordinária história de amor com a musa de Millais: “Ofélia” tinha agora um nome e uma biografia a descobrir. Também o poeta Jaime Rocha, companheiro de Hélia Correia, caiu sob o feitiço do enigma Siddal. Juntos, partilharam este “núcleo mitológico” e uma comum “volúpia de procurar os sítios”, assim fazendo companhia um ao outro, nas viagens a Inglaterra e no aprofundar dos conhecimentos: Jaime Rocha sobre Dante Gabriel Rossetti e os pintores pré-rafaelitas; Hélia Correia sobre tudo o que, sem intermediação dos biógrafos (cartas, diários, documentos) lhe permitia entrar na vida, no espírito e no coração de Elisabeth Siddal.

Em 2005, quando se sentia já como “o gato da casa”, como a “criatura que esteve dentro, enquanto todos os outros estavam fora, decidiu que podia, e devia, escrever um livro sobre Lizzie Siddal. Intitula-se “Adoecer” e não é uma biografia. Hélia Correia descreve-o antes como “um romance sobre uma pessoa e não sobre uma personagem”. È uma obra escrita em total liberdade “porque nunca faço ideia do que vou escrever. Vou por ali fora e é para onde a escrita quer ir que vai. (…). Nunca tenho projecto de escrita. Nunca sei o que vou escrever. Parto da primeira frase e depois vou atrás. Não comando nada”. Basta pensar um pouco na complexidade das personagens convocadas (Lizzie e Rossetti) para imaginarmos que, talvez, até nem houvesse outro caminho: “Aqui, as minhas pessoas estão completamente abafadas e presas no seu tempo e na sua história e não sairão daí para mais lugar nenhum da minha obra.”.

Ao longo dos dez anos que demorou este labor minucioso, de verdadeiro amor e paixão, também Jaime Rocha decidiu escrever. Procurou, através da poesia, reconstruir Elizabeth Siddal para a vida. “Como se tivesse dado existência a este quadro [Ofélia]. Ora está viva, ora está morta, nunca me consigo desligar da imagem inicial.”. Publicou primeiro “Os que vão morrer”: nele, os mitos medievais, da cultura grega, “todo um ambiente de crueldade, de violência, que tem a ver com a Idade Média” estão presentes. Depois publicou “Zona de Caça”: a poesia da “perseguição do cavaleiro à mulher”, inspirada nas suas viagens a Inglaterra. A seguir, “Lacrimatória”, sobre a “perda e o luto”. Lançou agora “Necrophilia”, o livro “da culpa e do lamento”, “do sentimento de culpa de Rossetti pela morte de Elizabeth Siddal. Termino com a figura dela, é um eterno retorno.”. Em conjunto, constituem a tetralogia da “Assombração”, “a tentativa de lhe construir uma vida poética, depois da culpa dele”.

Hélia Correia diz ainda que, em “Adoecer”, quis dar a Lizzie a voz que a ela, e às mulheres da sua época, foi negada. Quis, sobretudo, “dar-lhe aquela compreensão íntima que não encontrou na altura.”

“Adoecer” é o livro que vou ler a seguir. Por todas as razões acima indicadas e mais uma: compreendo e conheço muito bem a força poderosa destes ímpetos (ir)racionais de paixão (imagens, música, filmes, livros) que nos assaltam de repente a alma e o coração e invejo quem se deixa guiar por eles e parte assim à descoberta dos outros, do mundo e de si próprio.

Nota: as citações utilizadas são de uma entrevista dada por Hélia Correia e Jaime Rocha à jornalista Raquel Ribeiro e publicada no Suplemento “Ípsilon”, do Público de dia 26/3/2010.