quarta-feira, 31 de março de 2010

Há mais vida para lá do (des)acordo ortográfico

Nem de propósito, um colega enviou-me ontem por mail um registo de algumas expressões do português falado em Moçambique: é uma língua "em construção" e em plena apropriação pelos seus falantes. Exactamente como diz Mia Couto na crónica "Perguntas à Língua Portuguesa". Estamos perante uma língua viva, à margem de qualquer (des)acordo ortográfico. E ainda bem. Apresento o exemplo de Moçambique porque foi o único a que tive acesso (e veio mesmo a calhar, diga-se a verdade), mas tenho a certeza de que o mesmo se está a passar nos outros países de expressão portuguesa.

"São 6 da manhã. Moçambicano não dorme, ferra. O despertador toca. Ele não se levanta cedo, madruga. E não vai tomar duche, vai duchar. E não se arranja, grifa-se bem. Depois não toma pequeno-almoço, mata-bicha. E não bebe café solúvel e pão com doce, toma café batido e bread com jam. Não sai de casa para ir trabalhar, vai no serviço. E quando chega ao local de trabalho não pede desculpa por se ter atrasado, diz sorry lá, que tive problema de transporte! E não trabalha até ao meio dia, djoba até àquela hora das 12. E aí não pede ementa, pede menu. E não come, tacha. Não come batata frita, come chips. Não come salsichas, come vorse. Não come costeleta, come t-bone. E não bebe uma laurentina preta, toma uma escura. E não fala com o amigo sobre a namorada, bate papo “brada, minha dama”. E não gosta muito, grama maningue. E na saída do restaurante não vê as mulheres que passam, aprecia as damas. E não seduz, paquera. E não faz convite, pede contacto. E não a segue, vai à sua trás. E não encontra um conhecido mais velho, apanha um jon cota.

Na rua não compra cajú, compra castanha. E não tira fotografias, fota.
No escritório, a empregada não despeja o lixo, no ofice trabalhadora vai deitar. E não traz o jornal, leva. E não põe insecticida, baygona. E não tem reuniões, tem meetingsno computador ele não escreve, taipa. E depois não faz impressão, printa. E não trabalha as fotografias em Photoshop, fotoshopa. E para fazer um intervalo não vê o patrão, tcheka o bosse. E não sai para dar uma volta, dá um djiko. E não escreve sms para a amiga colorida, manda mensagem para a pita. E não mente dizendo que está ocupado, mafia que tá bizi. Moçambicano não trai, cornea. Não caminha, estila. Não se faz de difícil, jinga. Não acaba uma tarefa, ultima. E no fim do trabalho não vai, baza. E com os amigos não tem negócios, tem bizne com bro. E ao fim do dia não vai ao ginásio, djima. E não tem bicicleta, tem bikla. E não está musculoso, big. E não faz saudação batendo na mão do amigo, deketa. E não gosta de aproveitar a vida, enjoy a laifa

E não vai buscar a namorada que está num cabeleireiro distante, a arranjar as unhas e a fazer tranças no cabelo, vai apanhar a dama que faz unha e entrança láaaaaaa no salão. E não bebe um refrigerante, tomam refresco. E a namorada não usa mini-saia e saltos altos e anda descapotável, põe sainha e uns saltos e tá descartável. E não lhe diz que é bonita, diz “tens boas”. Não vê televisão nas horas livres, fica assistir..."

O português de Moçambique é assim uma mistura maningue nice de estrangeirismos, sobretudo ingleses, mas também de neologismos vários formados a partir do próprio português misturado com as línguas locais. Mia Couto tem, pois, abundante e deliciosa matéria para os seus escritos, está bem de ver!.

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