domingo, 14 de março de 2010

Antologia pessoal de uma (in)definição

No século XVI Luís de Camões escreveu um dos seus mais conhecidos sonetos:

Amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É ter, com quem nos mata, lealdade,

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Sem o saber, estava a iniciar um verdadeiro “leitmotiv” na poesia portuguesa e também a descobrir um verdadeiro filão que tem alimentado a inspiração de inúmeros poetas até hoje. No “Amor é...” Camões não expressou apenas um sentimento, deu também voz a uma necessidade inscrita desde sempre no espírito do Homem: a de traduzir em palavras o que pensa e o que sente, para se definir a si próprio perante o(s) outro(s). A poesia não é mais do que uma forma de fazer isso mesmo, ainda que nem sempre queira, ou possa, dizer de facto tudo pois, como explicou Matias Aires no século seguinte, não podemos esquecer nunca que: “O amor não se pode definir, e talvez que esta seja a sua melhor definição. Sendo em nós limitado o modo de explicar, é infinito o modo de sentir: por isso nem tudo o que se sabe sentir, se sabe dizer: o gosto, e a dor, não se podem reduzir a palavras. O amor não só tem ocupado, e há-de ocupar o coração dos homens, mas também os seus discursos; porém por mais que a imaginação se esforce, tudo o que produzir a respeito do amor, são átomos. Os que amam não têm livre o espírito para dizerem o que sentem; e sempre acham que o que sentem é muito mais do que o que dizem; o mesmo amor entorpece a ideia e lhes serve de embaraço: os que não amam, mal podem discorrer sobre uma impressão, que ignoram; os que amaram são como a cinza fria, donde só se reconhece o efeito da chama, e não a sua natureza, ou também como o cometa, que depois de girar a esfera, sem deixar vestígio algum, desaparece.” (In Reflexões sobre a vaidade dos homens, 1752).

Embora certamente conscientes disto, os que deram continuidade ao tema na nossa poesia, tomaram dois rumos distintos: uns contentaram-se com a imitação do modelo que admiravam, explorando as potencialidades da antítese ou do paradoxo como formas privilegiadas de exprimir o indizível, fazendo quase “pastiches” do soneto camoniano; outros, sem perder de vista os versos primordiais, seguiram por um caminho distinto e procuraram inovar e dar a sua visão pessoal e poética sobre o tema.

Entre os que “navegaram à vista” encontra-se um Anónimo publicado na colectânea barroca Fénix Renascida (1716-28):

É um nada Amor que pode tudo,
É um não se entender o avisado,
É um querer ser livre e estar atado,
É um julgar o parvo por sisudo;

É um parar os golpes sem escudo,
É um cuidar que é e estar trocado,
É um viver alegre e enfadado,
É não poder falar e não ser mudo;

É um engano claro e mui escuro,
É um não enxergar e estar vendo,
É um julgar por brando ao mais duro;

É um não querer dizer e estar dizendo,
É um no mor perigo estar seguro,
É, por fim, um não sei quê, que não entendo.

Ou, ainda do período barroco, esta aproximação do poeta alemão Georg Philipp Harsdörffer (1607-1658): 



E, já no século XVIII, também este soneto do Abade de Jazente:

Amor é um arder que não se sente;
É ferida que dói e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura
É a ânsia, a mais cruel e a mais impura;
É frágua, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando em quando;
É quem me causa eternos sentimentos;
É quem me mata e vida me está dando.

É já do século XIX um outro poema que, continuando a estabelecer uma clara correlação com o classicismo camoniano, e com o próprio período barroco, reescreve a definição do amor numa lógica antitética, mas agora ampliada também pelas metáforas e reforçada pelas sucessivas enumerações. É o caso de “Se se morre de amor!” de Gonçalves Dias (1823-1864):

Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus, gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isto é amor, e desse amor se morre!

Ainda do séc. XIX é também este soneto de Elisabeth Barrett Browning:

No entanto, o amor é belo, e tem valor.

O fogo é sempre vivo, quer consuma
Um templo ou palha; quer arda uma pluma,
Quer um tronco de cedro, dá fulgor.

E amor é fogo. Quando, com ardor,
Digo: Gosto de ti, eu sei que há uma
Mudança no meu rosto; sinto, em suma,
Que ao dizê-lo irradia luz, calor.

Nada é baixo no amor, nem quando ama
O mais humilde. Deus sempre aceitou
O amor de quem o ama na pobreza.

O que sinto por ti, é uma chama
Que ilumina a penumbra do que sou;
A mão do Amor corrige a Natureza.

In Sonetos Portugueses (Trad. Manuel Corrêa de Barros)

Segue-se-lhe, logo no início do século XX, José d’Abreu Albano que, em 1912, escreveu a “Esparsa III”, aliando o tema clássico à forma tradicional, tal como o próprio Camões também fez, jogando sobretudo com a cadência rítmica das rimas encadeadas:

Amor me faz esperar,
Esperança me faz rir,
O riso me faz chorar,
O choro me faz sentir;
O sentir me faz sofrer,
O sofrer me causa dor,
A dor me dá um prazer
E o prazer cantos d’amor.

Também Mário de Sá-Carneiro se deixou conquistar pela poesia de feição tradicional e popular e escreveu “O Amor”:

Mote (popular)
Amor é chama que mata,
Sorriso que desfalece,
Madeixa que desata,
Perfume que se esvaece.

Glosas
Amor é chama que mata,
Dizem todos com razão,
É mal do coração
E com ele se endoidece.
O amor é um sorriso
Sorriso que desfalece.

Madeixa que se desata
Denomina-se também.
O amor não é um bem:
Quem ama sempre padece.
O amor é um perfume
Perfume que se esvaece.

E depois os Modernismos (primeiro e segundo) abriram de par em par as portas da liberdade poética e criativa, tanto na forma, como no conteúdo. É já na segunda metade do século XX que encontramos uma série de poemas que exprimem uma nova visão do mundo, do homem e do próprio amor, mas nos quais se escutam ainda os ecos do soneto de Camões. São poemas que, de forma intencional e depurada, fazem a ponte entre o passado e o presente da poesia portuguesa. Representam uma linha de continuidade que une os grandes poetas na vontade de escrever poemas que celebram sobretudo a essência da própria poesia: a palavra e o seu poder ao mesmo tempo transformador e libertador. É o caso de “Soneto à maneira de Camões”, de Sophia de Mello B. Andresen:

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é o meu tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que não m’o dês – pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas no oceano.

de “Quase nada”, de Eugénio de Andrade:

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

ou até mesmo da belíssima canção de Sérgio Godinho, “Definição do amor”:

Amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.”

Que o poeta de todos os poetas
me conceda boa estrela
que a estrela de todos os astros
me premeie na lapela
prémios de honor
prefiro os muitos
oferecidos pela mãos do amor
coroando o amor e os seus heterónimos
nem vão caber nos Jerónimos

Amores anónimos não há
e assim foi pela madrugada
mesmo que seja um “assim fosse”
vou nomear-te namorada
ninguém já soube o que é o amor
se o amor é aquilo que ninguém viu
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta na pena deste poeta:)

(R): É uma cor que dá na vida
o amor
é uma luz que dá na cor
mas é uma batalha perdida
que se trava com ardor
é uma cor que dá na vida
o amor
dor que desatina sem doer

Se devagar se vai ao longe
devagar te quero perto
mesmo que o que arde nunca cure
vou beijar-te a sol aberto
é já dos livros que o instante
se parece tanto com a eternidade
e que o amor, na verdade
só se cansa de ti
se de ti mesmo te cansas

Mordidas mansas, emoções
Suspiros densos, afagares
liberto das definições
o amor define os seus lugares
ilhas desertas até ver
ver o sol, a chuva
o arco do corpo
arco-íris, corpo a corpo
cara a cara, cor a cor
incandescendo o olhar
(Pousa agora, borboleta, na mão deste poeta:)
(R)

E ao pôr o dedo nas feridas
que supúnhamos curadas
provas de fogo atravessamos
no mar alto festejadas
não se controla o inesperado
nem se diz o indizível do amor
uma cor que fugiu
de um pano leve
e pairou serena e breve
no ar
(Pousa agora, borboleta, na pena deste poeta:)
(R).

Já Alexandre O'Neill, no tom de ironia séria que lhe era muito particular e com recurso a uma linguagem ao mesmo tempo metafórica e coloquial, escreveu que a melhor definição do amor, é fazê-lo:

O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!

Em 2005, no livro Geometria Variável (Lx: D. Quixote), também Nuno Júdice se deixou “tentar” e escreveu


O amor é

Ferida que não dói,
a palavra que não precisa de ser dita,
um olhar suspenso dos teus olhos,
respirar o ar em que respiras.

dizer o teu nome
e ouvir nele a tua voz,
esperar-te a cada instante
em que sei que me esperas,
dar-te a alegria que me dás,
ver-te chegar num eco de ave
e deixar que me prendas
com o teu gesto mais suave,
sentir-te, só, ao pé de mim,
e sentir-me tão longe de ti,
saber que existes em mim
como sei que existo em ti,
a flor de fogo do teu corpo, e beijar essa flor.

E este é, sem dúvida, o melhor remate para esta “viagem” peculiar pelas (im)possíveis definições do amor, pois mais do que perder tempo a explicar ou a dizer, importa é conjugar o verbo “amar” em todos tempos, modos e pessoas. E disso bem sabe Francis Cabrel...