terça-feira, 16 de março de 2010

Para grandes males, grandes remédios ou o poder curativo dos “conceitos predicáveis”

Aristóteles definiu a oratória como sendo a “arte de falar de modo a convencer”. Entenda-se: “a arte de falar em público de modo inteligente”. Claro que saber falar e saber pensar de forma clara estão aqui quase indistintamente associados. A oratória barroca do Padre António Vieira, na minha imodesta opinião pessoal, claro, é um dos melhores exemplos disso mesmo. Deve ser por isso que foi praticamente desconjuntada nos programas escolares (não convém que as massas percebam muito bem o que é pensar ou argumentar).

Alguns breves excertos do “Sermão do Mandato”, datado de 1655 e pregado por António Vieira na Misericórdia de Lisboa, bastam para perceber o que é a oratória, pois “A beleza da sua linguagem está na sua mesma nobre simplicidade, conciso ajustamento, precisão perfeita, natural fluência – arte que emerge da vida.”, conforme refere Hernâni Cidade (In Pe. António Vieira, Obras Escolhidas).

Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit:
Cum dilexisset suos, in finem dilexit eos (1)

I – Definição da matéria: Os quatro remédios do amor

Acomodando-me pois ao dia, ao lugar e ao Evangelho, sobre as palavras que tomei dele, tratarei quatro coisas, e uma só. Os remédios do amor e o amor sem remédio. Este será, amante divino, com licença de vosso coração, o argumento do meu discurso.

Os remédios, pois, do amor mais poderosos e eficazes que até agora tem descoberto a natureza, aprovado a experiência e receitado a arte, são estes quatro: o tempo, a ausência, a ingratidão, e, sobretudo, o melhorar de objecto.

Estas são as quatro partes do nosso discurso; vamos acreditando amor e desacreditando remédios.

II – Primeiro remédio: O Tempo

Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera! São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira, embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhes os defeitos, enfastia-lhes o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.

O amor que é verdadeiro tem obrigação de ser eterno, porque, se em algum tempo deixou de ser, nunca foi amor: Si autem desierit, nunquam vera fuit. Notável dizer! Em todas as outras coisas o deixar de ser é sinal de que já foram; no amor o deixar de ser é sinal de nunca ter sido. Deixou de ser? Pois nunca foi. Deixastes de amar? Pois nunca amastes. O amor que não é de todo o tempo, e de todos os tempos, não é amor, nem foi, porque se chegou a ter fim, nunca teve princípio. É como a eternidade, que se, por impossível, tivera fim, não teria sido eternidade: Declarans amicitiam aeternam esse, si vera est.

III - Segundo remédio: A Ausência

E que terra há que não seja a terra do esquecimento, se vos passastes a outra terra? Se os mortos são tão esquecidos, havendo tão pouca terra entre eles e os vivos, que podem esperar, e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra causam tais efeitos, tantas léguas que farão? Em os longes passando de tiro de seta, não chegam lá as forças do amor.

IV – Terceiro remédio: A Ingratidão

O terceiro remédio do amor é a ingratidão. Assim como os remédios mais eficazes são ordinariamente os mais violentos, assim a ingratidão é o remédio mais sensitivo do amor, e juntamente o mais efectivo. A virtude que lhe dá tamanha eficácia, se eu bem o considero, é ter este remédio da sua parte a razão. Diminuir o amor o tempo, esfriar o amor a ausência, é sem-razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão o aprova, o persuade, e parece que o manda. Que sentença mais justa que privar do amor a um ingrato? O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do mais tíbio amor, mas merecedor de todo o ódio. Finalmente o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver? O exemplo que temos para justificar esta razão ainda é maior que os passados.
A natureza e a arte curam contrários com contrários. Sendo, pois, a ingratidão o maior contrário do amor, quem duvida que este terceiro remédio seria também o último, e o mais presente e eficaz, ou para extinguir de todo, ou, quando menos, para mitigar o amor de Cristo?

V – Quarto e último remédio: Melhorar de Objecto

É pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar: o melhorar de objeto. Dizem que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga. Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito, assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que, se acaso se encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afectos como a luz entre as qualidades. Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas.

VI – Exortação final - ‘Remédio santo’ de todas as loucuras cometidas pelos homens: o divino amor

Ah! Senhor, que só o vosso amor, que não teve remédio, pode ser o remédio das loucuras do nosso. Remediai tantas cegueiras, remediai tantos desatinos, remediai tantas perdições. E pelo amor com que nos amastes no fim, tenha hoje fim todo o amor que não é vosso. Esta é, amoroso Jesus, esta é só a mercê que por despedida vos pedimos nesta última hora vossa. Lembrai-vos, enfermo divino, que estais nos últimos transes da vida. Não vos esqueçais de nós em vosso testamento. O legado que esperamos de vossa liberalidade, como criados, e a esmola que pedimos a vossa misericórdia, como pobres, é que nos deixeis, pois nos deixais, alguma parte do vosso amor. Amanhã vos hão de partir o coração: reparti dele conosco, para que de todo o coração vos amemos. Oh! quanto nos pesa nesta hora, e para sempre, de vos não ter amado como devíamos! Nunca mais, Senhor, nunca mais! Só a vós havemos de amar de hoje em diante, e posto que em vós concorram tantos motivos de amor, e tão soberanos, só a vós, e por serdes quem sois. Assim o prometemos firmemente a vosso amor, e assim o confiamos de vossa graça, e só para que vos amemos eternamente na glória. Amén.

(1) Sabendo Jesus que saíra de Deus e ia para Deus, como tinha amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Job 13, 1.3)
(Nota: texto sem alterações, mas com supressões, títulos meus)

É extraordinário como palavras proferidas há mais de três séculos atravessam quase incólumes os tempos e conseguem, sem muito esforço, encaixar-se na perfeição aos dias que vivemos. É que, curiosamente (ou talvez não), os ‘remédios’ apontados pelo orador para os (des)amores divinos estão bastante adequados a (des)amores mais profanos. Sábias palavras estas, de facto!

No séc. XVII, os pregadores exerciam no púlpito precisamente a mesma função que, hoje, cumprem na televisão os comentadores-vedeta que todos conhecemos: usar a palavra de forma eficaz para manipular as mentes e encaminhar as vontades dos seus ouvintes/espectadores num determinado sentido. A palavra é de facto uma arma, e bem poderosa.