quinta-feira, 25 de março de 2010

Da escrita e dos seus equívocos

Já aqui o tinha escrito e  cada vez mais penso que é assim: a palavra escrita também é terapêutica e catártica, na mesma medida em que é possível fazer terapia e catarse através da palavra dita. Talvez a escrita seja até mais poderosa, porque fica registada e, os textos produzidos podem ter impacto – positivo ou negativo - sobre os outros ao longo do tempo. Acerca disto reflectia, em 1938, Branquinho da Fonseca, num livro de contos intitulado Caminhos Magnéticos, e tinha toda a razão no que dizia:

"Primeiro quero dizer que vou escrever pela mesma razão por que algumas pessoas choram e porque a dor, por vezes, parece que fica mais pequena depois de se contar. Quando se põe em palavras parece que fica mais definida e este vago que me toma é o que custa mais. Em certos casos basta falar, contar a outra pessoa, mas escrevendo as palavras é melhor; põe-se mais fora de nós. Eu não sei explicar isto, mas é um fenómeno curioso e que pode ser talvez ou porque as palavras conforme vão tentando exprimir um sentimento o vão diminuindo para ele caber dentro delas, ou porque na verdade conseguem exteriorizar parte dos nossos sentimentos. (Exteriorizar: passar para o exterior). Ou ainda pode ser por exprimirem tão pouco. Depois olhamos as palavras com que dissemos essa dor e vemo-la só do tamanho delas. Ou não sei porque será, mas que é certo não tenho dúvida, pois experimentei várias vezes e tenho sentido sempre assim."

A blogosfera é hoje um excelente exemplo disto mesmo. Estão online milhares e milhares de páginas nas quais, das formas mais diversas, se faz a catarse da solidão, da amargura, da dor em vários estádios, das frustrações que nos assolam os dias e as noites, da dor de corno ou de cotovelo, da desmesura das vaidades ou dos dos egos mais ou menos acalentados pelos putativos leitores, ...

Sob a máscara da prosa ou da poesia, os blogues são sobretudo espaços de afirmação e de expressão pessoais. Contudo, o seu crescimento exponencial em quantidade e até, nalguns casos, em qualidade, tem provocado um efeito curioso, muito semelhante ao que Julien Gracq descreve para a literatura em suporte papel: o público que frequenta estes espaços virtuais “colocado diante duma grande variedade de escritores e de obras [leia-se, bloggers e blogues], reage de duas maneiras: por um gosto e por uma opinião. Instalado diante dum texto [leia-se diante do monitor], vai produzir-se nele o mesmo clic interior que sentimos, sem regras e sem razão, quando encontramos alguém: «ama» ou «não ama», sente ou não sente, à medida que vai virando as páginas” (In A literatura no estômago) e lendo as postagens. Alguns bloggers e respectivos blogues, pelas suas características peculiares e/ou pelas temáticas que abordam também possuem cada vez mais uma “audiência”, que lhes manifesta fervor e fidelidade sob a forma de visitas e comentários elogiosos. Alguns são autênticos clubes de fãs centrados em bloggers-vedetas, cuja existência carismática parece ser a resposta aos anseios, desejos e fantasias secretas de muitos dos seus seguidores. 

A tal ponto que a verdadeira literatura, no seu sentido canónico, publicada em papel,  já se sente ameaçada – e com razão - por esta nova realidade que provoca a debandada dos leitores para outras paragens, tal como já tinha sido, e continua a ser posta em causa, pela chamada literatura light, massificada, feita de best-sellers. Aquilo que Ernesto Sampaio, na introdução ao panfleto de Gracq, descreve como sendo uma ala da literatura “formada por obras sem defeitos, mas tão simplórias que parecem infantis (são as mais consumidas e premiadas).”. Tal como acontece no mundo da “literatura de papel”, também na net tudo assenta muito (salvo muito poucas e honrosas excepções) num grande equívoco, naquilo que Gracq designa mesmo como “formidável manobra de intimidação” (idem): “o assalto do não-literário mais agressivo”. E explica: "“O que glorifica hoje uma obra literária é sobretudo uma certa grosseria epidérmica cujo contacto arrepia, é uma garantia de origem como a poeira sobre as garrafas velhas.” (idem). É pois nestas águas turvas e equívocas que navega uma boa parte da escrita na blogosfera: confunde-se a si própria com literatura, por vezes até com a chamada “grande literatura”, assim confundindo igualmente os seus leitores e seguidores.

E é aqui que tudo volta ao princípio ou, se preferirmos, que a pescadinha mete o rabo na boca: o que está escrito no mundo virtual da blogosfera, ainda que formalmente perfeito, em prosa ou em verso, ainda que de uma engenhosidade admirável e de uma brilhante imaginação é, para o melhor e para o melhor, sobretudo expressão e afirmação pessoais. Por maior que seja a sua audiência, pertence, essencialmente, ao domínio do não-literário, da catarse, da terapia ou da (auto)adulação mais ou menos assumida, mais ou menos camuflada. Confundir muito do que aqui se escreve com literatura é cair num erro de julgamento com consequências negativas. Quando tal acontece, a verdadeira “literatura mingua de força e poderes, e do mesmo passo é a medida do homem que se reduz.” (idem).

É que a literatura, a verdadeira, exige que “o encontro do leitor com o escritor através da obra” produza “uma certa ressonância, «como se dois fios electrificados se tocassem». (idem). Do mesmo modo que “a única lei do escritor, para além de desenvolver ao máximo as suas possibilidades criadoras, consiste em devolver à comunidade cultural a que pertence um idioma diferente do que dela recebeu. Se não acrescentou nada, se a língua que existe agora é exactamente a mesma que existia quando começou a escrever, o seu nome pode desaparecer: a literatura em nada ficará afectada.” (idem).

É justamente o que aconteceria com muitos blogues se desaparecessem do espaço virtual: tudo ficaria e seria exactamente como antes. Ninguém daria por nada, porque não existem para a literatura, nem sequer são literatura, mesmo que alguns tenham essa presunção ou até essa reputação.