sexta-feira, 19 de março de 2010

(Re)interpretar o passado a partir do incerto futuro

David Macaulay publicou, em 1979, “Motel of the mysteries”. Livro e respectivo autor não integraram propriamente os escaparates da grande literatura universal, antes pelo contrário. Contudo, a forma irónica e sarcástica como desconstrói e parodia algumas interpretações que os arqueólogos fazem do passado, tornam-no bem interessante. Nem sequer é muito difícil concluir que uma boa parte do pouco que sabemos hoje sobre algumas civilizações desaparecidas não passa, em muitos casos, de pura especulação dos arqueólogos. Mas, com tanta catástrofe natural, com tantas e tão profundas alterações climáticas de consequências já previsíveis (se as coisas não se alterarem rapidamente, o que não me parece provável), quem sabe se um dia, num futuro ainda distante, não seremos vistos assim?...

O narrador começa por relatar que um cataclismo natural, provocado pelo excesso de poluição na atmosfera, dizimou e soterrou quase toda a população mundial no final do século vinte, criando deste modo mais uma “civilização desaparecida”. Em 4022, Howard Carson (piscadela de olho a Howard Carter, que descobriu o túmulo de Tutankhamon em 1922) participa numa prova desportiva – a 116ª Maratona Continental Comemorativa da Catástrofe Norte-Americana -, mas deixa-se ficar para trás. Ao caminhar junto de uma antiga escavação abandonada, sente o chão a fugir-lhe debaixo dos pés. Mergulha na escuridão e, quando o pó assenta, vê-se diante de uma misteriosa entrada que ostentava ainda o selo sagrado e o número 26 na porta. Acidentalmente Carson tinha feito uma descoberta espantosa: um túmulo dessa civilização há muito perdida e quase desconhecida que tinha florescido em finais do século vinte. Os misteriosos rituais funerários dessa época iam ser finalmente revelados.


De imediato, uma equipa de voluntários deu início às escavações que rapidamente começaram a revelar ao mundo tesouros inacreditáveis. Quando entraram no túmulo '26', todos ficaram extasiados:


Na primeira câmara do túmulo, sobre a Plataforma Cerimonial (nº 4) encontraram um corpo que jazia de frente para o magnífico Altar-Mor (nº 1). Na mão segurava o Comunicador Sagrado (nº 3) e, em volta do pulso, uma faixa de ouro flexível com uma imagem semelhante à do altar superior. Um pouco por toda a câmara funerária encontraram vestígios dos antigos rituais fúnebres, incluindo vestes diversas, a placa peitoral de cerimónia (nº 2) e dois pares de sapatos, um deles muito ornamentado (nº 5). Vários recipientes que, em tempos, tinham contido libações e oferendas estavam sobre a plataforma cerimonial. Uma estatueta da divindade Watt (nº 9), que simbolizava o companheirismo e a clarividência, encontrava-se ao lado da plataforma. Umas das peças mais importantes era o Gelo (nº 10), cujo recipiente se destinava a preservar para a eternidade os principais órgãos internos do falecido. O tecto (nº 8) estava forrado de intrincados mosaicos coloridos, cada um decorado com perfurações paralelas.

Ciente de que os dois pares de sapatos indiciavam um duplo funeral, a equipa de Carson continuou a trabalhar afincadamente até descobrir a entrada da segunda câmara. O conteúdo desta câmara era ainda mais admirável. Como previsto, um segundo corpo foi encontrado.

Parecia até que tinha sido enterrado com maior cuidado, pois jazia num sarcófago branco muito polido (nº 9), encerrado atrás de uma cortina translúcida muito delicada e laboriosamente suspensa (nº 10). O extraordinário toucado conservou-se bem, constituindo um exemplo ímpar da arte de trabalhar o plasticus flexibilis. O seu padrão complexo ainda hoje desafia os estudiosos. Embora em locais diferentes, as posturas semelhantes dos dois corpos (reclinados) levaram Carson a concluir que a posição funerária era com o queixo apoiado sobre o peito. Uma melodia extraordinária ouvia-se sempre que se carregava a alavanca da caixa de música (nº 6) colocada por cima da Urna Sagrada (nº 2). Os objectos nº 1 e 4 eram utilizados na preparação do corpo para a viagem final e o nº 5 era o Pergaminho Sagrado, cujos pedaços eram periodicamente colocados na Urna Sagrada durante o ritual que antecedia o encerramento final do túmulo. Sobre a Urna Sagrada (nº 2) estavam ainda colocados o Diadema e o colar sagrado que eram usados conforme ilustra uma das assistentes de Carson. Na imagem, a assistente usa ainda os magníficos ornamentos para as orelhas feitos em plasticus petrificus e o maravilhoso cordão prateado com pendente. No diadema estava também inscrito o cântico sagrado, cujas palavras se pronunciavam mais ou menos assim: «Sãn-i-tizädo-pärãs-uap-rõt-e-c-ção»:


Durante um total de sete anos de trabalho, milhares de objectos foram encontrados, enquanto lentamente emergia do solo um enorme complexo mortuário, com dezenas de túmulos numerados, situados lado a lado, ao longo de um extenso corredor central (aquilo a que, hoje, chamamos hotel). Tal achado espantou e maravilhou o mundo de 4022. De entre os muitos objectos encontrados, salienta-se ainda:
O Selo Sagrado feito em plasticus eternicus, era colocado no puxador da grande porta exterior do túmulo pelos sacerdotes da necrópole a seguir ao encerramento do mesmo e destinava-se a proteger o defunto por toda a eternidade.


A Campainha, que era um instrumento de percussão altamente sofisticado que se tocava segurando uma parte em cada mão e batendo-as ritmicamente, o que fazia soar uma pequena campainha.

Todo o espaço agora descoberto será musealizado e aberto ao público. Na loja do museu, os visitantes poderão adquirir algumas cópias dos objectos descobertos no túmulo, como este serviço de café em porcelana, inspirado na urna sagrada.


Nota: desconheço autoria das ilustrações.