A necessidade de antecipar o que o futuro nos reserva angustia-nos desde sempre e há quem viva muito bem à conta disso mesmo: astrólogos, tarólogos, futurólogos e sei lá que mais. Mas, se fosse mesmo possível conhecer o futuro, conseguiríamos depois alterar o curso da vida, teríamos forças e coragem para nos mudarmos a nós próprios e, assim, impedir a concretização das previsões? Não creio. Faria sentido que houvesse previsões de futuro se tudo pudesse ser mudado antes de lá chegarmos? Não entraríamos assim no domínio da pura imprevisibilidade, tornando tudo ainda mais complicado? Muita ficção, tanto em livro, como em filme, tem saído destas e de outras interrogações, pelo que encerram de potencialmente atractivo (e também evasivo) e porque, naturalmente, espicaçam curiosidades e imaginários.
Estive a ler o último livro de Mário Zambujal, publicado no final de 2009. Trata-se da novela “Uma noite não são dias”, cujo subtítulo é “Intriga e paixões no esquisito ano de 2044”. A acção decorre em Lisboa e tudo se inicia com o reencontro fortuito de dois amigos – James e Antony – num bar de Alcântara. Nesta cidade que se tornou sobretudo «vertical», dada a altura dos edifícios, quase todas as coisas se mantêm muito iguais ao que já conhecemos. A privacidade tem de ser defendida quase à força, até pelo cidadão comum: “A tecnologia de audições coscuvilheiras, restrita às polícias no princípio do século, entrou depois no grande bazar da net e adquire-se agora a preços de pechincha na Praça de Espanha e no Martim Moniz.”, diz-nos o narrador logo no início. “Como por vezes acontece, a solução para novos males encontra-se nos antigos remédios. A pouco e pouco os indefesos cidadãos foram-se refugiando no uso da comunicação postal. As cartas inspiram confiança.”, conclui ele mais à frente.
A certa altura, uma conversa durante o jantar revela quase tudo o que há para dizer sobre este «futuro»:
“- Sei pouco de escultura – confessa ela. – Se não erro, Rodin esculpiu mulheres nuas mas a sua obra mais famosa é o Pensador. Estou certa?
- É possível, Grace, mas na minha opinião O Pensador devia ser mais olhado como um símbolo do que deixámos de ser. Hoje, quem pensa? Quem dispõe de tempo e liberdade para pensar? Quem cativa a mente para o pensamento próprio, resistindo ao assalto das notícias, desafios, folguedos, tragédias, distracções de todo o tipo? O Pensador não levanta os olhos para uma televisão, não tira a mão do queixo para atender o telefone. Ele pensa, é o que fazemos cada vez menos.”
Foi-me impossível (liberdades de leitora ou leitura abusiva; se calhar as duas coisas, não sei) não fazer a associação a uma outra obra bem mais antiga, da autoria de Cândido de Figueiredo*, publicada em 1892 e reeditada em 2003: “Lisboa no ano três mil”. Contudo, não posso deixar de sublinhar que, nesta última, o salto de ousadia tem um alcance bem maior, e não me refiro apenas à cronologia da narração.
Tudo começa logo no “aviso à navegação” que abre cada uma das obras. Mário Zambujal, com a pacata honestidade que o caracteriza, chama-lhe “Advertência” e nela diz que “Se está mesmo na disposição de ler este livro, devo prevenir: não se trata de antecipação científica. Teríamos nesse caso, um aluvião de sábios palpites que o futuro, implacável, acabaria por desmentir. Ao contrário, o que vai ler é uma história verídica, a ocorrer, garantidamente, no ano de 2044.”. Já Cândido de Figueiredo anuncia no seu “Prefácio” que se sujeitou à hipnose, não para reviver o passado, mas para “viver no futuro; guindar-me ao vértice das civilizações vindouras…”. Foi assim que, durante três horas, se fez transportar ao ano três mil e ao ponto mais civilizado do mundo de então - a Austrália -, onde se situa também a Biblioteca Universal. Nas suas prateleiras procura perceber “se ainda haverá memória do meu país e o que dele se pensa”. Depois de alguma pesquisa, encontra uma obra epistolar, intitulada "Digressões no Extremo Ocidente", escrita "pelo sábio Terramarique". Dela reproduz apenas algumas cartas porque "há por vezes nas suas palavras uma franqueza tão rude a nosso respeito, que, pelo menos, por agora, não reproduzirei o que mais possa ferir as susceptibilidades nacionais". As dez cartas que reproduz, apesar da «censura», revelam uma Lisboa em ruínas na sequência de "extraordinários cataclismos geológicos e grandes convulsões sociais" de que poucos "indígenas" escaparam com vida.
E foi assim que soube como “Nos primeiros anos do século XX, o industrialismo concentrara o resto das forças vivas do país, e o predomínio individual era a ambição única, o sonho dourado de seis milhões de cidadãos. No encalço dessa ambição, todos os meios eram legítimos. Os governados injuriavam os governantes, estes locupletavam-se à custa daqueles, o poder transmitia-se ao mais audaz e mais feliz, e a efémera duração dos consulados supremos apressava a anarquia geral. Por fim, ninguém pagava as despesas públicas, ninguém reconhecia os poderes do Estado”. Tudo o que lemos depois disto se assume quase como uma consequência inevitável desta situação caótica da governação nacional (onde é que eu já ouvi isto?).
Sobre a literatura diz “Não podes imaginar o que se disse e o que se escreveu, por esses tempos. A linguagem chegou a ser uma algaravia inextricável, donde a gramática e o bom senso fugiam espavoridos e horrorizados. (…) O romance era a fotografia da linguagem do tempo e o estimulante de paixões reles. A poesia, ou antes, o que se crismava com este nome, era, por via de regra, a extravagância metrificada a palmos, em gíria de estudante cábula.”
Encontrou também referências a um jornal chamado “Opinião da Arcada”, que, “falando sempre mal de tudo e de todos, é que adquiriu a mais extraordinária popularidade e o maior prestígio no ânimo de todos os governos” e no qual “Parece que a vida particular deixara de existir, porque entrava no domínio público tudo o que hoje consideramos íntimo, e defeso à curiosidade pública.”
Sobre a educação ficou a saber que “houve cinquenta e duas reformas do ensino secundário, não falando daquelas que não chegaram a executar-se, por absoluta inexequibilidade.” Já o ensino superior, pelo contrário, “seguiu destino oposto (…): a universidade, abordoada a uns estatutos do tempo da Inquisição e dos frades, arrastava imutavelmente a sua majestosa decrepitude…”.
Quanto à organização social “assim como em tempos remotíssimos houvera brâmanes e sudras, espartanos e ilotas, patrícios e plebeus, a sociedade portuguesa, em homenagem aos seus avoengos da Índia, Grécia e Roma, dividia-se, nos seus últimos tempos, em duas classes: ovelhas e pastores.”
Muito pouco há de comum entre os dois livros e respectivos autores, para além do propósito, mais ou menos assumido, de uma análise crítica ao Portugal contemporâneo que cada um deles conhece(u), contida nestas digressões pelo futuro imaginado. O estilo e a linguagem são muito distintos, mas eu diria que, quanto ao futuro, ficamos na mesma: pelo que li em ambos, o futuro, afinal, já está aqui, nos dias que vamos vivendo.
De qualquer modo, se tivesse que escolher entre os dois, não hesitaria: o livro de Cândido de Figueiredo cativa-me bem mais, pela ironia, pela visão crítica, pela linguagem ora subtil, ora crua, e, sobretudo, pela recusa de uma banalidade folhetinesca, como é o caso da “história de amor sem história” que, infelizmente, é a única linha de força do livro de Mário Zambujal. "Uma noite não são dias" lê-se bem e levanta algumas questões pertinentes e interessantes, mas não deixa de ser um livro característico do estilo a que chamo «de prateleira de supermercado» (que foi, aliás, onde o adquiri).
* Sim, o das «clássicas» Lições Práticas de Língua Portuguesa e do Dicionário da Língua Portuguesa!