quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Vem, vento, varre!

Vem, vento, varre
Sonhos e mortos.
Vem, vento, varre
Medos e culpas,
Quer seja dia
Quer faça treva,
Varre sem pena,
Leva adiante
Paz e sossego,
Leva contigo
Nocturnas preces,
Presságios fúnebres,
Pávidos rostos
Só cobardia.

Que fique apenas
Erecto e duro
O tronco estreme
De raiz funda,
Leva a doçura,
Se for preciso:
Ao canto fundo
Basta o que basta.

Vem, vento, varre!

Adolfo Casais Monteiro

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Vestígios

Logo bem cedo pela manhã, um ar fino e frio de outono agarra-se à pele como se quisesse aquecer as mãos nos rostos. Se ainda fosse verão poderia trocar o mergulho nas atlânticas águas pelo banho no suor do teu corpo até sentir na boca o sal que o verão depositou na tua pele. Poderia até olhar a tua respiração adormecida como quem, em frente ao mar, contempla o vai e vem das ondas.

Mas é já outono. As manhãs têm agora este ar fino e frio que me afaga o rosto enquanto caminho. Os banhos de mar deixaram de apetecer e, de repente, o teu corpo ficou distante. O único sinal de presença humana nesta paisagem é, na areia movediça, o rasto escarificado das minhas próprias pegadas. Fico a olhá-lo até que uma onda mais ansiosa avança pela praia como alguém que viesse esticar o lençol ao fazer a cama. Logo depois, quando retorna ao mar, parece que ninguém, nunca, por ali atravessou antes.

Agora que o outono chegou sou de novo como uma praia deserta e aguardo as marés vivas do inverno que virão, primeiro, desfazer os vestígios materiais da tua passagem pela fina areia da minha memória. Aguardo as marés que voltarão, depois, para apagar em mim até a própria memória desses vestígios.



terça-feira, 28 de setembro de 2010

Contar histórias também é uma música assim

Anos, planos, danos e (des)enganos

Eu já não sou do tempo de fazer anos. Julgo até que, nestes últimos tempos, são os anos que me (des)fazem a mim. A palavra “aniversário” tornou-se como que uma amálgama de “anos adversários”. Ou, como tão bem diz o poeta:

Os anos são um vento que nos mata
sem darmos por isso.
Não servem para mais nada.
Quanto mais os fazemos
mais eles nos fazem a nós.
É preciso ver que depois morremos
e não há mais nada a fazer.
Estamos feitos.

Na verdade,

Os anos que fazemos
também nos fazem a nós.
Os anos que fizemos nos fizeram.
Os anos que faremos nos farão.
É de anos que somos feitos,
de breve e misterioso tempo.
Em nós estão os anos que já fomos.
Esses anos que fizemos, somos nós,
do cimo da cabeças até à ponta dos pés.
Quanto tempo somos?
Quantos anos és?

De que é feito o tempo que nos faz?
Quanto tempo há?
Para onde vai o tempo que já foi?
Onde está o tempo que virá?

Álvaro Magalhães, “Aniversários” (excertos), in O Brincador, Ed. Asa

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A música também é um xamanismo assim

Metáforas (quase) naturais - VIII


Estremoz, 26/9/2010
 As labaredas do desencontro consomem muitas vezes de forma voraz a matéria de que são feitas certas estórias da vida impossibilitando-nos assim de as resolver, superar ou encerrar em devido tempo. É por isso que, sob o sopro pertinaz da vontade, da angústia ou do desejo se reacendem facilmente as chamas que, de novo, envolvem no seu ardente abraço os despojos carbonizados que permaneceram do fogo já passado. Contudo, é de breve folêgo esta  segunda vida de um fogo que arde, mas quase sem chamas, sem calor, sem brilho e que se esvai rapidamente em cinzas mortiças.

São estórias mal resolvidas que, embora nos assombrem os dias e os pensamentos, não têm mais lenha por onde arder. E assim, de forma quase inglória, se extingue de vez o fogo. Dele e das altas chamas que iluminaram a noite não ficará então mais do que um toco inútil na clareira da memória.

domingo, 26 de setembro de 2010

Scott Walker canta Brel e tudo o resto

My death waits like
a bible truth
at the funeral of my youth
weep loud for that
and the passing time

Anti-metáfora

Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d'ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.

Reinaldo Ferreira, Poemas

sábado, 25 de setembro de 2010

A pedra-do-coração

Às vezes penso que o mundo seria bem melhor se tivéssemos por coração uma pedra: a pedra-do-coração. Uma coisa inerte, parada, que se limitasse a estar ali naquele lugar, a ocupar aquele espaço que é o do coração (seja lá isso o que for). Uma pedra dura que não sentisse, não sofresse, não esperasse e, sobretudo, que não acreditasse. Um bocado de rocha irregular para quem as palavras lealdade, sinceridade, verdade ou amizade fossem apenas um mero conjunto de fonemas de significado inconjunto. Teria ainda a vantagem adicional de, em caso de tédio, poder ser atirada ao charco dos dias parados ou, em caso de exasperação, aos vidros fechados da indiferença.

Teria também esta pedra-do-coração a rude aspereza necessária para (in)dispormos dos outros a nosso bel-prazer: sim, agora apetece(s)-me e, só por isso, existes para mim, vem cá então; agora não me apetece(s), por isso fica aí quietinho e caladinho como cachorro bem educado que vem só quando o dono chama, tá? Tudo isto, claro, sem sombra de maldade ou sequer de interrogação.

Sim, era bom que uma pedra ocupasse o lugar do coração (seja lá isso o que for), pois teríamos então a vantagem de não ser iludidos nem iludirmos ninguém: a pedra que é à vista está. O mundo talvez fosse mais simples porque mais a preto e branco, sem zonas cinzentas a turvar a vista e, sobretudo, o entendimento. Assim se evitariam certamente muitas conclusões precipitadas, generalizações apressadas e outros tantos juízos de valor desprovidos de sentido ou de fundamento. O mundo seria então mais justo e todos nós, seus habitantes, mais verdadeiros e autênticos.

Se uma pedra ocupasse o lugar do coração (seja lá isso o que for) o mundo comunicaria talvez melhor e de forma mais eficaz: o impávido silêncio das coisas inertes teria bem mais eloquência do que tantas das esfarrapadas palavras e explicações com que tentamos, por vezes, justificar o injustificável.

É por isto tudo que seria bom poder colocar uma pedra sobre o assunto, isto é, seria bom que uma pedra viesse ocupar o lugar, em vão, daquilo a que chamamos coração (seja lá isso o que for)...

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Proverbiais e aforísticas

Quem usa as palavras para ferir e assim se divertir, talvez um dia também lá haja de ir.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Museu misterioso

The Secret Museum of Mankind é uma obra ao mesmo tempo misteriosa e fascinante, uma viagem onírica e por vezes arrepiante pelas bizarrias e exotismos da humanidade nos cinco continentes - América, África, Ásia, Oceania e Europa -, os quais constituem outros tantos volumes da mesma. Publicada em 1935, pela editora Manhattan House, não tem índice, datas, páginas numeradas, créditos fotográficos ou sequer autor. Nem tem texto propriamente dito, apenas fotografias legendadas.

Segundo alguns é voyeurismo puro mas, sobretudo, um documento antropológico de valor acrescentado nestes tempos de globalização em que tudo e todos parecem cada vez mais semelhantes, em toda a parte do mundo. Portugal está representado no volume dedicado à Europa com diversas fotografias de uma tourada no Campo Pequeno e também pela fotografia desta madeirense no seu traje típico:


Todas as outras imagens e volumes se podem consultar neste endereço: http://ian.macky.net/secretmuseum/index.html

Mas The Secret Museum of Mankind é ainda o título, retomado na década de 90 pela Yazoo Records, de uma compilação de cinco cd's de música do mundo gravada entre 1925 e 1948, também nos cinco continentes.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A táctica e a técnica da governação

Isto de governar um país tem que se lhe diga! Por um lado requer táctica, uma vez que a oposição se comporta quase sempre como uma matilha esfomeada à espreita do mais ligeiro sinal de fraqueza para avançar de emboscada sobre a presa, para gáudio dos media e, sobretudo, do povo, para quem uma boa e sangrenta carnificina muito ajuda a espairecer, já desde os longínquos tempos do Circo Máximo. Por isso, um governo que tenha amor ao lugar que ocupa tem, em primeiro lugar, que manter a boa forma física para poder escapar com facilidade à perseguição dos opositores inimigos. Também uma boa camuflagem todo-o-terreno, assim estilo “eu sou bom, sou mesmo muito bom!” transmite uma imagem de segurança e autodomínio que mantém os beligerantes líderes da oposição a uma distância mais ou menos segura, pelo menos até às próximas eleições!

Por outro lado a governação requer também técnica. E julgo que, perante as notícias, comunicações, discursos, declarações, inaugurações e afins vindas a público nos últimos tempos o nosso governo utiliza de forma recorrente a técnica americana do brainstorming ou tempestade de ideias. Nem é difícil imaginar que, às quintas-feiras de manhã, os elementos do conselho de ministros se reunem sob a liderança segura e firme do nosso primeiro-ministro, o qual, uma vez iniciada a sessão, avança com uma nova ideia, uma proposta, um problema, um projecto ou algo assim. Depois, de forma entusiástica, cada um dos ministros diz então a primeira ideia ou palavra que lhe vem à cabeça, enquanto a secretária anota diligentemente tudo o que vai sendo dito. Quantas mais ideias e sugestões melhor, pois nesta técnica como é sabido - e ao contrário do que é mais usual - a quantidade gera, supostamente, qualidade. No fim, é só fazer a triagem das melhores sugestões e propostas, convocar a conferência de imprensa e divulgar ao país e ao mundo os brilhantes resultados de mais uma árdua manhã de trabalho. Assim se compreende bem melhor por que motivo é hoje imperioso avançar com grandes obras públicas para dinamizar a economia mas, no brainstorming seguinte, ou melhor, num outro conselho de ministros, já se anuncie que, afinal, ficam cancelados os concursos internacionais por causa da conjuntura económica desfavorável, coisa e tal. Assim se consegue entender que num dia seja aconselhável estabelecer pactos com o líder da oposição em nome do interesse nacional mas, na semana seguinte, já seja de todo inviável qualquer entendimento, exactamente pelo mesmo motivo. Também é por isso que, num dia, declaram que na Finlândia é que é tudo bom e temos que fazer cá tudo igual mas, no dia seguinte, o sul da europa não tem lições a aprender com ninguém pois somos capazes de encontrar as melhores soluções para os nossos problemas. É por isso que, numa dada semana, a taxa de desemprego está a descer, evidente sinal de que a economia está a recuperar e, uns dias depois vêm dizer que, afinal, ela voltou a subir – mas apenas umas décimas - porque os mercados ainda estão sob o efeito de uma coisa qualquer que ninguém sabe lá muito bem o que é. Esta semana estamos já demasiado endividados mas, na semana seguinte, afinal, está tudo como previsto dentro do orçamento de estado e não se percebe por que razão as taxas de juro da dívida pública sobem sem parar nos mercados internacionais.

É por tudo isto que só posso concluir que, ou estamos a ser governados por uma trupe de funâmbulos malabaristas que andam a treinar para um novo espectáculo do Cirque du Soleil, ou então – o que me parece bem mais provável – por um grupo de seres alienígenas que se apossou dos corpos e mentes dos nossos verdadeiros governantes e está agora apostado em destruir-nos para que os restantes alienígenas, que ficaram muito quietinhos à espera numa nave espacial não localizável pelos nossos sistemas de defesa aérea, possam depois vir colonizar o planeta a partir do centro de operações montado - para nosso grande azar - no território nacional. E agora o mais provável é que, quando chegarmos a tomar consciência desta tal invasão alienígena, já estaremos todos subjugados por estas perigosas criaturas  e impossibilitados de qualquer reacção para as repelir para bem longe. Restar-nos-á então apenas a esperança de uma intervenção de país amigo que nos venha salvar das garras destes monstros sugadores de sangue e a certeza de que, no que à governação do país diz respeito, qualquer semelhança entre a realidade e a ficção não é pura coincidência.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Preferências

Ao engenhoso verso prefiro o (re)encontro marcado pela antecipação (im)paciente da expectativa. Às sonantes estrofes prefiro a quentura da mão sobre outra mão.  Ao eco das rimas prefiro a ansiedade do beijo que se entranha nos lábios. Aos palavrosos sonetos prefiro a maresia da transpiração que alastra sobre a pele. Ao vistoso fraseado retórico prefiro o mudo entendimento dos corpos que se confundem no vórtice dos sentidos enredados.

Sem qualquer hesitação, de amor, prefiro os gestos às palavras e os beijos aos poemas.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"A poesia também são notícias que você dá às pessoas de pequenos factos."

Ao poeta brasileiro José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, foi atribuído em Maio deste ano o Prémio Camões.

Numa entrevista recente (Pública, 19/9/2010), entre muitas outras coisas, falou sobre a forma como, desde sempre, escreve poesia: “Veja-me, hoje estou aqui em casa, tenho mesa, tenho escritório, tenho tudo. Mas muitas vezes estou na rua, me ocorre uma coisa, tiro um papel do bolso, anoto. Por exemplo, o Poema Sujo grande parte dele eu fiz andando pela rua. Concebendo. Depois ia para casa e escrevia.”
(...)
“Costumo dizer que o meu poema nasce de um espanto, de alguma coisa que inesperadamente me surpreende e me revela um lado da vida que eu não tinha visto, não tinha percebido. Não precisa ser nada de extraordinário... É um cheiro de uma tangerina, o meu filho está abrindo uma tangerina na sala e, de repente, aquilo me leva para um estado... Eu já senti cheiro de tangerina a vida inteira mas de repente fico naquele estado porque descubro algo que me leva a elaborar. Esse poema a que voce se refere [Acidente na sala]: eu estava aqui na sala vendo televisão e tocou o telefone. Levantei-me abruptamente e aí o meu osso, o fémur bateu no ilíaco, no osso da bacia, traaac, deu um tranco. Eu fui atender, falei, voltei, me sentei e pensei: “Mas eu tenho osso.”

Teoricamente, todos nós sabemos que temos osso, em esqueleto. Uma coisa é a teoria, outra coisa é você sentir o osso bater um no outro. Aí perguntei: então tem osso mesmo de verdade? Mas osso pensa? Quem é que está se surpreendendo com esse osso? Sou eu? Tem alguma coisa a ver com ele? Osso pergunta? Osso não pergunta? Quem pergunta? Então aí começou o poema que eu depois escrevi. Nasce assim. O título é Acidente na sala. A poesia também são notícias que você dá às pessoas de pequenos factos. Não é: destruíram as torres gémeas, não é grandes notícias, não. É um osso bateu no outro, a notícia da poesia é essa: fui assaltado por um jasmineiro no jardim da casa da Cláudia [Ahimsa, sua companheira e também poeta], fui assaltado de noite, com as armas que ele tinha, que é o cheiro dele... Então eu quero informar vocês que fui atacado por um jasmineiro. Essas são as notícias que o poeta dá para as pessoas.” (itálico meu)
Manuscrito do poema de Ferreira Gullar "Uma Corola" do livro Em alguma parte alguma

domingo, 19 de setembro de 2010

Talvez se chame saudade

Luís Morales é um sociólogo espanhol que se apaixonou por Lisboa aos 18 anos. Não sei se gosta mais dela do que alguns portugueses, mas certamente que a conhece melhor que muitos de nós. Começou por escrever um livro - Talvez se chame Lisboa - que é uma espécie de percurso literário na cidade. Criou agora uma página de internet - http://www.poramoralisboa.com/ - com sugestões de percursos diversos, restaurantes, bares e alojamentos.

Embora tenhamos quase sempre aquela ideia - tantas vezes errada - de que conhecemos bem a nossa terra e, por isso, não precisamos de guias, vale bem a pena visitar este olhar que vem de fora, à descoberta dos (re)cantos e encantos do nosso país. Talvez até seja, para muitos, uma boa surpresa.

Metáforas (quase naturais) - VIII

Azaruja, 18/9/2010
A mesma e esfomeada vida que nos vai abocanhando nacos da alma é a que vem depois, aos gritos, incitar-nos a continuar a caminhada para não nos consumirmos na gangrena da dor. E nós, ainda que feridos de morte, lá retomamos a fuga para a frente, movidos apenas pela adrenalina da sobrevivência e do dever até ao dia em que, esgotadas de vez as forças, nos deixemos resvalar lentamente pela encosta abaixo:

“Que nossa vida é sonhar,
E a morte despertar
Para nunca mais dormir
Nem acordar.”

Gil Vicente, Auto da Barca do Purgatório

sábado, 18 de setembro de 2010

O drama existencial em cena no palco das nossas vidas














O mundo inteiro é um palco.
Todos os homens e mulheres não passam de actores,
Têm as suas entradas e as suas saídas;
E na sua vida um homem desempanha muitos papéis;
Os seus actos têm sete idades. Primeiro, a criança,
Gritando e babando nos braços da ama.
Depois o aluno chorão, com a sua pasta
E a sua brilhante face matinal, vai-se arrastando como um caracol
De má vontade para a escola. E depois o apaixonado
Suspirando como uma fornalha, com uma balada triste
Composta para a sobrancelha da sua namorada. Mais tarde um soldado,
Cheio de estranhos juramentos, e barbado como um leopardo,
Zeloso da honra, e violento e rápido na luta,
Buscando a bolha de ar que é a fama
Até na boca do canhão. E depois a vez do juiz,
Com sua barriga redonda recheada por um bom capão,
De olhos severos e a barba de corte formal,
Cheio de sábios refrões e exemplos modernos;
E assim representa o seu papel. A sexta idade se transforma
Em calças largas e chinelos,
Com óculos no nariz e a bolsa do lado,
Os seus calções da juventde, bem conservados, demasiadamente largos
Para as suas magras canelas; e sua forte voz viril,
Transformando-se novamente em falsetes infantis, apita
E assobia o seu som. A última cena de todas,
Que põe fim a esta estranha história cheia de acontecimentos,
É uma segunda infância e um simples esquecimento,
Sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem nada.

William Shakespeare

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Os pobres dos ricos

 Ainda estávamos no séc. XIX quando Almeida Garrett atirava à cara dos seus pares o seguinte discurso: E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?

Ora, desde então, o mundo mais não tem feito do que perseguir despudoradamente a riqueza como um valor absoluto e, sobretudo, como garantia segura de um poder económico e político também quase total sobre os outros. Que se saiba, ainda nenhuma nação até agora sequer se interrogou sobre a sua legitimidade (da ética é melhor nem falar) para (sobre)explorar os recursos naturais em países cujo povo morre literalmente à míngua de tudo à beira das ricas jazidas de matéria-prima.

Quando muito o mundo lá se lembra de vez em quando de fazer de conta que faz mea culpa, quanto mais não seja para baixar o tom de voz dos apelos e recriminações de muitas ONG's que, tantas vezes, apenas têm meios para prolongar por alguns dias a agonia de quem só conhece a fome, a sede e a doença. Até organizações internacionais como a ONU fazem de conta às vezes. Neste caso particular, faz de conta que não está atada de pés e mãos às vontades e caprichos dos países ricos e poderosos. Por isso lança de quando em vez umas iniciativas, subscritas sempre por quem precisa também de fazer de conta que se interessa ou preocupa com o triste destino dos pobres. É o caso dos chamados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio que, até 2015, pretendem reduzir os números mundiais da pobreza, da fome ou da mortalidade materno-infantil. Quase às vésperas da grande cimeira internacional que vai discutir estas questões foi tornado público um relatório que avalia o cumprimento das metas e chega à conclusão de que existem “défices graves” em todas elas. Assim por alto, qualquer coisa como 1,4 mil milhões de almas continuam a tentar sobreviver com menos de 1,25 dólares diários (número definido pelo Banco Mundial como o limiar da pobreza), enquanto se estima (certamente por alto) que 925 milhões continuam a sofrer de fome crónica. Revela ainda que ajudas internacionais prometidas e efectivamente entregues são duas realidades bem distintas.

Assim, dentro de alguns dias, 139 chefes de estado e de governo chegarão com toda a pompa e circunstância a Nova Iorque para discutir quantas crianças famintas vão sobreviver por mais algum tempo. Durante os grandes banquetes celebratórios de tão histórica ocasião discursarão com voz grave, manifestando o seu mais profundo empenho em ajudar os pobres para que eles não morram de inanição. Concluirão depois com brindes do mais fino champanhe francês e apreciarão as iguarias mais raras e requintadas, enquanto aproveitam a oportuna ocasião para discutir os chorudos negócios que, no futuro próximo, os tornarão ainda mais ricos. Quando se levantarem da mesa muitos já nem sequer se lembrarão do motivo que os levou à Cimeira. Ou seja, tudo está bem quando acaba bem: se há muito mais pobres no mundo é porque há mais ricos também, milionários até. E, por enquanto, só isso é que interessa.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Redundância

Dou voltas e voltas, quase sempre à volta dos mesmos lugares e das mesmas pessoas, enredando-me nos dias e no assombro das noites.

Dou voltas e voltas, mas volto quase sempre ao que fui naquele lugar triste da infância de onde, às vezes, parece que nunca saí.  Naquilo que verdadeiramente importa, e apesar das voltas e reviravoltas, volto quase sempre a esse lugar onde parece que a minha alma em vez de ganhar pés para andar – como deveria – ganhou raízes e, por isso, ficou impossibilitada de seguir em frente.

Dou voltas e voltas, quase sempre à volta das mesmas e obsessivas palavras para concluir, afinal, que a vida é feita muito mais de círculos que de ciclos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

terça-feira, 14 de setembro de 2010

"todas as cores estão fora de prazo"

trarás o azul mais forte e pavonazo,

sinópia de veneza, ultramarino,
o roxo mais intenso e assassino
e terras de siena e um grande vaso

de alvaiades e ocre e verde fino.
se o tempo não chegar não faças caso:
todas as cores estão fora de prazo
e é essa acaso a tinta do destino.

um dias as pintarás: aquém da porta,
aquém da zona escura cujas malhas
são na luz da manhã um feltro estranho,

toda a nudez das duas se recorta,
entre celhas e jarras e toalhas
e o vapor de água enquanto tomam banho.

Vasco Graça Moura, Sonetos Familiares, Quetzal, 1999

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A seara futura

Olho e, de repente, parece que a planície se desnudou para conseguir suportar o calor das tardes. Já nem a rasa penugem loura do pasto se vislumbra na superfície curtida pelo sol e pela sede. Com os regos escalavrados da antiga seara atravessados no espaço da janela à minha frente, lembra uma grossa e rugosa folha de papel pardo. A terra espera há já muito tempo que a chuva venha apagar das suas linhas esboroadas a memória das searas passadas para poder (re)começar tudo de novo. Mas, por estas tardes quentes, a seara futura cresce ainda e apenas na fértil imaginação dos homens.

domingo, 12 de setembro de 2010

Escrever

Escrever sobre, escrever porque, escrever quando, escrever onde, queiramos ou não, são sempre variantes mais ou menos dissimuladas, mais ou menos assumidas, de escrever para...

Palavrometria

Escrever é também uma forma de ver. É possível ver o mundo e os outros através das palavras como se elas fossem lentes. Com uma atitude de optometrista escolhemos a palavra X e vemos mais ao perto. Escolhida a palavra Y verificamos que as coisas e as pessoas parecem mais distantes, mais inofensivas ou mais insignificantes. Algumas das palavras-lentes desfocam claramente a realidade, enquanto outras se limitam a distorcer um ou outro traço característico de coisas ou de pessoas. Com certas palavras é como se, de repente, tudo ficasse mais nítido, com cores mais vivas.

E se estamos à procura de uma determinada palavra mas não conseguimos encontrar “aquela palavra”, é como quando saímos à rua e nos esquecemos dos óculos em casa: não é que deixemos de ver ou que sejamos incapazes de ver, mas falta-nos algo de essencial para mediar a nossa percepção do mundo. Assim é também com as palavras. São elas que nos situam no mundo, que nos posicionam junto dos outros e, sobretudo, que nos permitem perceber quem somos e onde estamos.

sábado, 11 de setembro de 2010

A queda

Com as Torres Gémeas desmoronaram-se também percepções, convicções, políticas, crenças, certas ideologias e ideias (feitas ou não) e, sobretudo, a ingenuidade que nos permitia acreditar que o mundo poderia vir a ser diferente e melhor. De facto, o mundo ficou diferente depois daquele dia onze de setembro mas, infelizmente, não mudou para melhor. Bem pelo contrário.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Da utilidade do post-it

(re)criar as palavras

Almada Negreiros escreveu um dia que “Nós não somos do século de inventar as palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas.”

Assim sendo, seremos nós capazes de, com elas, dizer alguma coisa de novo?

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Peculiaridades

Somos, de facto, um país peculiar. Jogamos futebol, quase até à exaustão, mas só nos bastidores dos relvados. É aí que somos brilhantes: na estratégia, na intriga, nas fintas... Agora, só falta mesmo a adptação aos ditos relvados. Quando tal acontecer (se vier alguma vez a acontecer), seremos campeões.

E foi ali

Foi à beira do precipício que percebi que tinha chegado ao mais profundo de mim. Foi quando me debrucei sobre o abismo escancarado junto aos meus pés que compreendi que estava, de facto, a olhar-me nos olhos. Perante a minha dor emudecida, o fundo líquido do abismo abriu-se e separou-se, formando dois muros de águas turvas. Entre eles surgiu então uma espécie de terra-de-ninguém. E foi ali, no meio das pedras soltas e da lama que ficaram à vista, que percebi o que era verdadeiramente importante: no fim de tudo apenas ficará o que tenha força suficiente para ter direito a existir. Tudo o resto se dissolverá nas águas do tempo.

A comunicação... que pena!

Na sociedade dita “da comunicação” falar tornou-se quase tão necessário e relevante como respirar. A qualidade ou o conteúdo do que se diz, a forma como se diz não são importantes: fundamental mesmo é falar muito, como se esse simples acto de dizer fosse a única forma possível de afirmação pessoal, ou a melhor forma de mostrar aos outros o quanto somos bem sucedidos do ponto de vista social. Tornou-se especialmente popular falar com alguém que não está ali fisicamente, usando para isso o telemóvel (ou, na net, o chat). Há até quem, mesmo quando está rodeado por um grupo de pessoas, faça questão de falar ao telemóvel com alguém que nunca se sabe muito bem quem será, mas que deve ser muito importante para que a pessoa em causa prefira dialogar com quem está à distância, em vez de falar olhos nos olhos com os que estão mesmo ali, à sua volta...

Isto é particularmente visível nos jovens que crescem com um telemóvel colado à orelha. Falam imparavelmente e alguns são incapazes de escutar alguém por mais de escassos segundos. O bom, velho e nem sempre fácil diálogo não será nunca viável como forma de resolução dos problemas para esta nova geração. Nem me parece que eles estejam muito interessados nisso. Talvez seja também por essa razão que a agressão física e a violência verbal são cada vez mais utilizadas pelos jovens como se fossem uma linguagem tão viável como a verbal. Linguagem utilizada sobretudo com os que estão mais próximos do ponto de vista afectivo, aqueles que, justamente, mais deveriam ser capazes de ouvir, e não apenas de falar: namorados, amigos, pais, colegas, irmãos ou entre casais. Em última análise e de uma forma distorcida, a violência física também pode ser, para estes jovens, a maneira de forçar o outro a ouvir o que têm para dizer, ou a forma mais eficaz de se fazerem entender pelo outro. Ainda por cima, quase sancionada pela violência banalizada a que estão expostos todos os dias, em todos os meios de comunicação social. Ainda por cima exacerbada por um excesso de comunicação que, na sua essência, é também ele violento.

É tal como Rubem Alves dizia: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar... Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil.

A gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor... Sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração... e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor...”

Estamos, de facto, mergulhados em comunicação, mas seria bom interrogarmo-nos de vez em quando sobre que comunicação é esta e para onde é que ela nos está a levar.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Certas notícias são mais notícia do que outras

Ao que parece a crise aguçou a competição entre as revistas ditas “cor-de-rosa” que lutam pela sobrevivência num mercado já saturado, tentando cada ganhar, e manter, a maior ‘fatia’ de mercado possível. Não sei, mas imagino que não seja nada fácil mostrar ou escrever alguma coisa de diferente todas as semanas quando o panorama da socialite portuguesa é, à semelhança do país, pequenino, mesquinho e cheio de tiques à novo-rico... Contudo, os escaparates lá se vão enchendo e, pelos vistos, até há bastante público disposto a pagar para saber as últimas desta estranha faixa da nossa sociedade, em festa e felicidade, permanentes.

Aqui há dias, na sala de espera de um consultório, iludi a demora inusitada com a leitura de uma destas revistas que estava por lá à disposição de quem tinha que esperar para ser atendido e, no meio de um artigo sobre a suposta sucessão de escândalos inusitados que têm afectado a família real da Suécia por estes últimos tempos, encontrei esta fotografia e respectiva legenda que considero ser uma das melhores peças jornalísticas a que tive acesso nos últimos tempos. De tal modo que não resisti a surripiá-la...

Revista flash!, nº 377
Além da evidente, e até desculpável, gralha na palavra “novaido”, chamou-me a atenção o erro, esse sim bem grave, de concordância entre sujeito e verbo: “...o namorado envolveu-se com uma colega e engravidou”. Concluí que deve ser assim que se faz uma notícia verdadeiramente bombástica, capaz de aniquilar a concorrência, pois ficamos a saber que o ex-noivo da princesa ficou grávido depois de se ter envolvido amorosamente com uma colega de trabalho. Isto, sim, é notícia! Uma revelação destas é, no mínimo, de tirar o fôlego. Não admira, pois, que as revistas “cor de rosa” tenham tanto sucesso de vendas!

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Ponto de não-retorno

A palavra dita é por vezes desajeitada na sua espontaneidade, rude na sua impulsividade, inexacta na sua pressa. Vale tanto pelo que diz, como pela forma como é dita, talvez até mais por esta. Quando confusa ou precipitada, carece muitas vezes de clarificação, às vezes até de justificação. Tem, por isso e quase sempre, volta atrás. Contudo, vê-se muitas vezes enfraquecida, senão mesmo emudecida, pelo fluxo contínuo e ruidoso da comunicação oral. Talvez por isso, muitas vezes, apesar da sua dureza ou da sua assumida intenção de ferir, se limite apenas a deixar uns arranhões dispersos que, embora possam ser incómodos, não são de modo algum fatais.

Bem diferente é a palavra escrita. Mais depurada no conteúdo e apurada na forma, ganha em poder elocutivo o que perde às vezes em espontaneidade. Troca a impulsividade pela intencionalidade, o que lhe garante uma maior frieza e, por isso também, uma maior eficácia comunicativa. O fluxo textual confere-lhe força, tornando-a porta-voz da sua própria identidade semântica. A sua maior racionalidade permite-lhe abrir feridas profundas, dolorosas e por vezes mesmo fatais. Materializada na escrita a palavra torna-se, de certo modo, definitiva. Até pode estar sujeita a interpretações diversas, mas dar o escrito por não-escrito não é possível e, nesse sentido, a palavra escrita é também um ponto de não-retorno.

domingo, 5 de setembro de 2010

Cidadões ou cidadãos?

Todo e qualquer blogue que veicule informação, comentários e também rumores (em muitos casos, especialmente estes, o que é de lamentar) sobre o que deliberam, fazem ou dizem os nossos políticos e governantes nacionais ou locais e que aceitem comentários anónimos é um bom sítio para perceber o estado da arte da dimensão cívica dos nossos concidadãos. Esta parte do anonimato é muito importante porque funciona como uma espécie de desinibidor: é quando sabem que não serão identificadas que as pessoas parecem revelar verdadeiramente o que lhes vai na alma e, provavelmente, a verdadeira matéria de que é feita essa mesma alma. Dou apenas um exemplo, o da quase crónica e indignada queixa de que há lixo e detritos acumulados nas ruas. Pergunto eu: quem deixará os sacos de lixo ao lado do contentor? quem deitará sistematicamente os papéis, as pontas de cigarro, os sacos e embalagens para o chão? quem escarra nas calçadas, conspurcando-as?

Na verdade, quase ninguém está muito interessado em discutir as razões de fundo de uma qualquer decisão, apresentando argumentos válidos e consistentes, poucos parecem estar interessados em perceber a fundamentação do projecto a, b ou c, menos ainda em reconhecer que a obra x ou y, afinal, até nem foi assim tão má ideia quanto isso.

O que muitas vezes os tais comentários anónimos deixam perceber é que todos os políticos, independentemente da sua 'cor' partidária são uns pulhas sobre quem se pode e deve descarregar de forma sistemática e indiscriminada insultos e/ou acusações. É político, ou exerce um cargo público? Então nem sequer tem direito ao benefício da dúvida. É vigarista e mau carácter a priori. Tudo o que disser é de imediato rotulado de mentira para baixo, pois estou convencida que a maior parte das vezes nem sequer é escutado. Ora nada disto tem muito a ver com cidadania, muito menos com responsabilidade, e leva-me até a pensar que a democracia parece às vezes ter o dom de despertar o lado pior dos cidadãos que dela beneficiam. Concordo com Vasco Pulido Valente quando afirma numa das suas últimas crónicas do Público (5/9/2010) que o grande “feito” de Salazar foi ter criado uma espécie muito peculiar de cultura política que ainda hoje perdura no espírito de muitos, mesmo dos mais jovens e que nunca conheceram a ditadura: um povo que embora rosne entre dentes lá vai obedecendo, resignado, preocupado só com a sua vidinha de hoje, curvando o espinhaço perante os poderes e poderosos do momento, e lá no fundo sempre adepto da “mão forte” que “mete a canalha na ordem, como diz o comentador.

Pois que fazem estes cidadãos anónimos nos momentos cruciais das grandes decisões? Estarão eles bem informados sobre as deliberações, decisões e respectiva legislação? Conhecerão eles os seus direitos e também os seus deveres enquanto cidadãos? Procurarão ver para além do 'barulho das luzes' mediático, para além do horizonte imediato e díspare dos comentadores e dos 'opinion makers' do momento? Agirão, de forma sistemática e enquanto cidadãos devidamente organizados, contra tudo o que lhes parece incorrecto e não apenas movidos pelo mero interesse pessoal?

Não me parece que assim seja ou, pelo menos, não têm abundado os bons exemplos. Apenas iniciativas esporádicas. Quando chamados a participar no debate público e sobre a coisa pública que é, afinal, de todos nós, a maioria prefere faltar à chamada (veja-se o caso paradigmático e crónico das enormes taxas de abstenção em tudo quanto é eleição). Talvez se o debate fosse anónimo... Muitos nem compreendem que criticar tudo e todos apenas porque sim não leva a lado nenhum, nem nunca mudará coisa alguma. É preciso responsabilizar, exigir responsabilidade e ser-se responsável também. É aqui que, como cidadãos, falhamos e muito. É aqui que se revela claramente que usar a liberdade de expressão para criticar dizendo tudo o que nos vem à cabeça, só por si, não é de grande utilidade. É aqui que se percebe que não basta falar. É preciso também agir.

No fundo, esta atitude de crítica violenta, mas anónima, acaba por ser triplamente negativa. Por um lado leva a que os cidadãos não se reconheçam e muito menos se sintam representados pelos políticos que temos. Por outro lado, e em consequência directa disso mesmo, leva a uma atitude passiva, de alheamento e de não-participação. E o pior de tudo: leva a que, quem não cumpre as regras, quem é deliberadamente irresponsável ou corrupto, escape impune e com os bolsos cheios à custa da nossa passividade enquanto cidadãos.

Exemplo desse alheamento passivo é o projecto europeu dos Orçamentos Participativos. Á semelhança do que acontece em vários países europeus, há já uma década que, em Portugal, os cidadãos podem decidir (votar) sobre a forma como as câmaras municipais gastam uma parte do seu orçamento. E podem fazê-lo propondo eles próprios projectos de intervenção ou escolhendo as propostas que lhes parecem priritárias ou mais interessantes para a sua cidade/comunidade. Em todo o país, apenas doze municípios (ver aqui) aderiram até agora a esta nova forma de participação responsável por parte dos cidadãos e promotora, parece-me, de um debate saudável sobre os temas e situações que realmente nos afectam e importam. Em todo o Alentejo são apenas três os municípios que, até agora, aderiram ao projecto dos Orçamentos Participativos, como se pode conferir na página do observatório criado para os acompanhar e monitorizar: Alvito, Serpa e Castro Verde.

Nas autarquias por onde ando, vivo e trabalho – Évora e Estremoz – ainda não ouvi a ninguém uma única palavra sobre isto e estou, é bom de ver, a falar dos cidadãos, não dos políticos. Acredito que, para estes, a ideia de ter que partilhar com os cidadãos uma parte das suas decisões financeiras seja, no mínimo, desconfortável. Mas a nós, cidadãos que tanto criticamos (todas ou quase todas) as decisões tomadas pelos governantes municipais, que nos impede afinal de exigir aquilo que é um direito nosso: participar directamente nas decisões de investimento e gestão da nossa autarquia? Essa passagem das palavras à acção é que seria, na verdade, e entre outras mais que também são possíveis, uma atitude de maturidade cívica e democrática que, se calhar, levaria muitos políticos a pensar duas vezes antes de tomar certas decisões. Aí sim, seríamos cidadãos e já não 'cidadões' como tantas vezes parecemos ser.

sábado, 4 de setembro de 2010

Dias lisos e quentes

Dias lisos e quentes de verão ainda sem fim anunciado. Dias agridoces em que apetece mas não apetece. Dias vastos como um pego de águas paradas. Dias que se sucedem iguais em monocromia e em monotonia. Dias lisos na expectativa de alguma coisa que parece sempre prestes, mas que não chega nunca a contecer. Dias lisos, mas nem sempre de lisura, apenas de oportuna escorreiteza. Dias quentes mas nunca incendiários. Apenas dias lisos na penumbra morna e parada da casa. Apenas dias.

Silêncio para duas vozes

Lídia imaginou um corpo deitado numa praia, ao lado de outro corpo. Eram um homem e uma mulher e falavam. E o que diziam, ou o que a muher dizia, era a tentaiva de um diálogo fundo, mais fundo do que o diálogo de amor que se trava, ao nível do corpo, entre uma mulher e um homem. Ela procurava uma forma de encontro, através das palavras, um encontro que era, antes de mais, consigo própria, e só depois com o homem que escutava. Ou era apenas um jogo de palavras? Hesitou de repente, sem ver claro. Em algum lugar, é verdade, a falsidade começava. Talvez porque a mulher imaginada pressentia que o homem estava parcialmente fora do diálogo e lhe resistia, como se ele representasse, de certo modo, um perigo, e se pudesse finalmente converter numa agressão contra ele próprio. Talvez por medo, sim (pensou), o homem recusasse participar e levar a sério o que a mulher contava, aceitava-o apenas como um passatempo, compreensível numa praia em que todas as horas eram iguais e vazias. Ele estabelecera, portanto, limites tácitos a todas as palavras, verificou, e, se a mulher que falava tentasse ultrapassá-los, ele obrigá-la-ia a retroceder e a alegar que estava mentindo.
(…)
É que ela esperava que o amor fosse uma ponte para outra coisa, disse Afonso, outra coisa que não existia, não existiria nunca, ela forçava obscuramente um caminho através do amor, através dele, uma saída, uma porta, uma passagem, como se o universo fosse de repente abrir-se, alargar-se em direcções diversas – mas não havia no universo dimensões sonhadas, existia apenas o quotidiano, exacto e transparente.

Teolinda Gersão, O Silêncio, Sextante Editora, 2007, 5ª ed.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Um país a arder por fora e por dentro

Estrela, 29/8/2010
A casa de Deus e das Cegonhas
Estrela é o nome de uma aldeia no meio do nada. Com os pés molhados pelas águas de Alqueva, é uma quase-ilha ligada ao resto do Alentejo por uma única estrada de alcatrão. Percorre-se a solidão e o silêncio das ruas vazias, impecavelemnte limpas e brancas, como se caminhássemos numa outra dimensão do tempo, ou como se os relógios estivessem imóveis. É a imagem perfeita do interior rural do país: parado no tempo à espera que a agonia lenta das casas faça o seu lento trabalho de destruição da memória.
Há já muitos anos que no Alentejo é assim, até pela própria natureza do povoamento e da distribuição da terra. Este deserto (de pessoas e, consequentemente, dos serviços) começa agora estender-se de forma mais acelerada ao interior centro e norte.




Estrela, 29/8/2010
A fachada-envelope de correio azul


O encerramento das escolas é só um sintoma, porventura o mais doloroso e significativo, da lenta agonia de um país inteiro a envelhecer precocemente à míngua de crianças e de jovens.
Podemos é estar certos de que haverá cada vez mais aldeias-ilhotas isoladas no grande mar seco e sem vida em que o interior rural do país se está a transformar. Até porque, votado propositadamente ao esquecimento, há já muitos anos que este mundo rural deixou de ter forças e meios para competir com o brilho e o fascínio das grandes urbes. Pagaram-se mesmo avultados subsídios para que as terras não ficassem incultas.
Estrela, 29/8/2010
A chaminé-cantareira

Sob o sol implacável de Agosto há um país que arde lentamente, de várias e irreversíveis formas. Quando as cinzas cobrirem até a própria memória dos tempos em que havia um país para lá da(s) grande(s) cidade(s) seremos certamente um país moderno ao nível dos melhores da Europa ou como dizia Almada Negreiros, com a acutilante ironia que lhe era peculiar, no "Manifesto Anti-Dantas": “PORTUGAL QUE COM TODOS ESTES SENHORES, CONSEGUIU A CLASSIFICAÇÃO DO PAÍS MAIS ATRASADO DA EUROPA E DE TODO O MUNDO! O PAÍS MAIS SELVAGEM DE TODAS AS ÁFRICAS! O EXÍLIO DOS DEGREDADOS E DOS INDIFERENTES! A ÁFRICA RECLUSA DOS EUROPEUS! O ENTULHO DAS DESVANTAGENS E DOS SOBEJOS! PORTUGAL INTEIRO HÁ-DE ABRIR OS OLHOS UM DIA – SE É QUE A SUA CEGUEIRA NÃO É INCURÁVEL E ENTÃO GRITARÁ COMIGO, A MEU LADO, A NECESSIDADE QUE PORTUGAL TEM DE SER QUALQUER COISA DE ASSEADO!”
Estrela, 29/8/2010
Celebração da vitória pessoal sobre a adversidade







E, no entanto, é por causa disto que ainda há sítios como a Estrela. O que não deixa de ser irónico.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Barbie, o Ken e o Telemóvel

Quanto mais olho à minha volta mais me convenço de que Voltaire tinha toda a razão quando afirmava com um cinismo muito pessoal que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Eu acrescentaria até um «cada vez mais». Senão vejamos. Aqui há uns anos atrás ofereciam-se Barbies às meninas para que elas brincassem às casinhas e fossem ensaiando desde cedo a arte de serem mulheres (leia-se ‘domésticas’) perfeitas “na sala e na cozinha”, pois o quarto era outra história. Os meninos, esses, brincavam aos índios e cowboys, com carrinhos ou andavam de bicicleta. Depois alguém veio dizer que isso era politicamente incorrecto, pois assim se perpetuavam velhos (pre)conceitos retrógrados sobre a família e sobre o papel da mulher nessa mesma família e na própria sociedade. E foi então que surgiu o Ken. Com ele, os meninos já podiam brincar com as meninas e, até para estas, brincar às casinhas era agora muito mais realista e motivador, pois permitia uma verdadeira interacção pessoal, assim tipo:

“A Barbie entra em casa apressada e com ar cansado, carregando vários sacos de compras e a pasta com o portátil: Fecha a porta e dirige-se imediatamente à cozinha para começar a preparar o jantar; o Ken está já sentado no sofá da sala, frente à televisão, com um ar tranquilo e a fazer zapping a ver se encontra algum jogo de futebol. Da cozinha a Barbie pergunta: «Então Ken, como foi o teu dia?»

«Ora! Igual aos outros!» – responde o Ken de mau humor para, logo a seguir, perguntar bem alto: «Então e o jantar ainda demora muito?»

Era perfeito, de facto. Mas como tudo o que é bom nesta vida, tinha um senão. Como continuar a brincar com a Barbie ou com o Ken a partir dos doze, treze anos, sem levantar suspeitas?

Tal questão ficou resolvida há alguns anos com a invenção e difusão do Telemóvel, espécie de brinquedo assexuado (quando vibra é que fico sempre com dúvidas...) que nos permite observar como rapazes e raparigas brincam às casinhas na era dita da tecnologia. Mantêm os telemóveis sempre à vista e junto a si para os contemplarem com uma ternura sôfrega e verdadeiro cuidado amoroso ou parental. Embevecidos, mostram aos amigos a última gracinha que descobriram no meio da parafrenália de aplicações com que vêm equipados. Os olhos brilham sempre que toca ou vibra, desviando-lhes a atenção de tudo o resto pois, como toda a boneca que se preze, exigem exclusividade. É ver a súbita ansiedade e preocupação de quem acabou de ouvir o choro... perdão, o toque do telemóvel, mas não lhe pode dar atenção, ali mesmo, naquele instante. É ver como é preciso pedir com muito jeitinho, em tudo quanto é espectáculo, para que as pessoas desliguem o telemóvel e, mesmo assim, há sempre uns quantos que tocam e gente que responde em surdina ou manda mensagens o tempo todo.

Na verdade é fascinante a sensação de ter quase o mundo todo contido num objecto com tamanho de brinquedo, ainda que seja um mundo virtual, de faz-de-conta, povoado de «amigos» mais ou menos fictícios, de imagens ilusórias, de relações transitórias e de palavras vazias de sentido. Um mundo de fantasia, tão irreal como o da Barbie e do seu eterno namorado Ken... o que não deixa de ser curioso. Agora, novos, velhos e assim-assim brincamos despudoradamente às casinhas nas redes sociais com o nosso telemóvel – como há uns anos atrás uma criança brincaria com a Barbie ou com o Ken. Estamos sempre “contactáveis” e passamos horas a “comunicar” com uma infinidade de gente. Seremos por isso melhores pessoas, mais dialogantes e, sobretudo, mais tolerantes? Estaremos mais e melhor preparados para viver em sociedade? O assustador crescimento dos números da violência em geral, e da doméstica em particular, até entre os mais jovens, aí está para confirmar que as coisas não melhoraram assim tanto.

Por isso, talvez o melhor seja adoptar o “optimismo” cínico de Candide (a personagem de Voltaire) e esperar que, com toda esta incessante “prática comunicativa”, venhamos a ter num futuro próximo o melhor dos mundos possíveis, que é como quem diz, uma geração de homens e mulheres de espírito arejado e livre dos preconceitos do passado. Um mundo em que mesmo a já tradicional falta de diálogo nas famílias e os velhos problemas de comunicação entre gerações sejam erradicados. Talvez um mundo em que falar à mesa durante o jantar seja apenas uma recordação de tempos obsoletos: digita-se antes um sms - de preferência com animação e fundo musical adequado - e envia-se sem demora para o filho adolescente que, sentado do outro lado da mesma, trata logo de responder e, se se armar em parvo, apanha uma traulitada do telemóvel projectado pelos ares para perceber melhor o que o pai quer dizer. E caso a esposa – ou a namorada - esteja armada em difícil envia-se um mms do Mike Tyson com a cara toda rebentada e fica logo a coisa resolvida sem que seja necessário pronunciar uma só palavra desagradável. Talvez um mundo em que estejamos todos em permanente comunicação com todos e, por isso mesmo, bem mais felizes. Afinal a comunicação na era da tecnologia é uma coisa fantástica. Ou será que não?

P.S. - E que é feito da Barbie e do Ken, esses brinquedos obsoletos e preconceituosos da era pré-teconológica? Não desapareceram, não. Tornaram-se objecto de colecção para adultos endinheirados e, se calhar, também saudosistas de uma forma de viver a infância, de ser criança e de crescer que já não volta.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

E porque é Setembro...



Les oliviers baissent les bras
Les raisins rougissent du nez
Et le sable est devenu froid
Oh blanc soleil
Maitres baigneurs et saisonniers
Retournent à leurs vrais métiers
Et les santons seront sculptés
Avant Noël

C'est en septembre
Quand les voiliers sont dévoilés
Et que la plage, tremble sous l'ombre
D'un automne débronzé
C'est en septembre
Que l'on peut vivre pour de vrai

En été mon pays à moi
En été c'est n'importe quoi
Les caravanes le camping-gaz
Au grand soleil
La grande foire aux illusions
Les slips trop courts, les shorts trop longs
Les hollandaises et leurs melons
De cavaillon

C'est en septembre
Quand l'été remet ses souliers
Et que la plage est comme un ventre
Que personne n'a touché
C'est en septembre
Que mon pays peut respirer

Pays de mes jeunes années
Là où mon père est enterré
Mon école était chauffée
Au grand soleil
Au mois de mai, moi je m'en vais
Et je te laisse aux étrangers
Pour aller faire l'étranger moi-même
Sous d'autres ciels

Mais en septembre
Quand je reviens où je suis né
Et que ma plage me reconnaît
Ouvre des bras de fiancée
C'est en septembre
Que je me fais la bonne année

C'est en septembre
Que je m'endors sous l'olivier

Gilbert Bécaud

A entropia do (poema de) amor?

Este é o poema do amor.
O poema que o poeta propositadamente escreveu
só para falar de amor,
de amor,
de amor,
de amor,
para repetir muitas vezes amor,
de amor,
de amor,
de amor.
Para que um dia, quando o Cérebro Electrónico
contar as palavras que o poeta escreveu,
tantos que,
tantos se,
tantos lhe,
tantos tu,
tantos ela,
tantos eu,
conclua que a palavra que o poeta mais vezes escreveu
foi amor,
amor,
amor.
Este é o poema do amor.

António Gedeão, Poesias Completas

Proverbiais e aforísticas

Bom conselho: com telefone desligado não entra transviado.