Quanto mais olho à minha volta mais me convenço de que Voltaire tinha toda a razão quando afirmava com um cinismo muito pessoal que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Eu acrescentaria até um «cada vez mais». Senão vejamos. Aqui há uns anos atrás ofereciam-se Barbies às meninas para que elas brincassem às casinhas e fossem ensaiando desde cedo a arte de serem mulheres (leia-se ‘domésticas’) perfeitas “na sala e na cozinha”, pois o quarto era outra história. Os meninos, esses, brincavam aos índios e cowboys, com carrinhos ou andavam de bicicleta. Depois alguém veio dizer que isso era politicamente incorrecto, pois assim se perpetuavam velhos (pre)conceitos retrógrados sobre a família e sobre o papel da mulher nessa mesma família e na própria sociedade. E foi então que surgiu o Ken. Com ele, os meninos já podiam brincar com as meninas e, até para estas, brincar às casinhas era agora muito mais realista e motivador, pois permitia uma verdadeira interacção pessoal, assim tipo:
“A Barbie entra em casa apressada e com ar cansado, carregando vários sacos de compras e a pasta com o portátil: Fecha a porta e dirige-se imediatamente à cozinha para começar a preparar o jantar; o Ken está já sentado no sofá da sala, frente à televisão, com um ar tranquilo e a fazer zapping a ver se encontra algum jogo de futebol. Da cozinha a Barbie pergunta: «Então Ken, como foi o teu dia?»
«Ora! Igual aos outros!» – responde o Ken de mau humor para, logo a seguir, perguntar bem alto: «Então e o jantar ainda demora muito?»
Era perfeito, de facto. Mas como tudo o que é bom nesta vida, tinha um senão. Como continuar a brincar com a Barbie ou com o Ken a partir dos doze, treze anos, sem levantar suspeitas?
Tal questão ficou resolvida há alguns anos com a invenção e difusão do Telemóvel, espécie de brinquedo assexuado (quando vibra é que fico sempre com dúvidas...) que nos permite observar como rapazes e raparigas brincam às casinhas na era dita da tecnologia. Mantêm os telemóveis sempre à vista e junto a si para os contemplarem com uma ternura sôfrega e verdadeiro cuidado amoroso ou parental. Embevecidos, mostram aos amigos a última gracinha que descobriram no meio da parafrenália de aplicações com que vêm equipados. Os olhos brilham sempre que toca ou vibra, desviando-lhes a atenção de tudo o resto pois, como toda a boneca que se preze, exigem exclusividade. É ver a súbita ansiedade e preocupação de quem acabou de ouvir o choro... perdão, o toque do telemóvel, mas não lhe pode dar atenção, ali mesmo, naquele instante. É ver como é preciso pedir com muito jeitinho, em tudo quanto é espectáculo, para que as pessoas desliguem o telemóvel e, mesmo assim, há sempre uns quantos que tocam e gente que responde em surdina ou manda mensagens o tempo todo.
Na verdade é fascinante a sensação de ter quase o mundo todo contido num objecto com tamanho de brinquedo, ainda que seja um mundo virtual, de faz-de-conta, povoado de «amigos» mais ou menos fictícios, de imagens ilusórias, de relações transitórias e de palavras vazias de sentido. Um mundo de fantasia, tão irreal como o da Barbie e do seu eterno namorado Ken... o que não deixa de ser curioso. Agora, novos, velhos e assim-assim brincamos despudoradamente às casinhas nas redes sociais com o nosso telemóvel – como há uns anos atrás uma criança brincaria com a Barbie ou com o Ken. Estamos sempre “contactáveis” e passamos horas a “comunicar” com uma infinidade de gente. Seremos por isso melhores pessoas, mais dialogantes e, sobretudo, mais tolerantes? Estaremos mais e melhor preparados para viver em sociedade? O assustador crescimento dos números da violência em geral, e da doméstica em particular, até entre os mais jovens, aí está para confirmar que as coisas não melhoraram assim tanto.
Por isso, talvez o melhor seja adoptar o “optimismo” cínico de Candide (a personagem de Voltaire) e esperar que, com toda esta incessante “prática comunicativa”, venhamos a ter num futuro próximo o melhor dos mundos possíveis, que é como quem diz, uma geração de homens e mulheres de espírito arejado e livre dos preconceitos do passado. Um mundo em que mesmo a já tradicional falta de diálogo nas famílias e os velhos problemas de comunicação entre gerações sejam erradicados. Talvez um mundo em que falar à mesa durante o jantar seja apenas uma recordação de tempos obsoletos: digita-se antes um sms - de preferência com animação e fundo musical adequado - e envia-se sem demora para o filho adolescente que, sentado do outro lado da mesma, trata logo de responder e, se se armar em parvo, apanha uma traulitada do telemóvel projectado pelos ares para perceber melhor o que o pai quer dizer. E caso a esposa – ou a namorada - esteja armada em difícil envia-se um mms do Mike Tyson com a cara toda rebentada e fica logo a coisa resolvida sem que seja necessário pronunciar uma só palavra desagradável. Talvez um mundo em que estejamos todos em permanente comunicação com todos e, por isso mesmo, bem mais felizes. Afinal a comunicação na era da tecnologia é uma coisa fantástica. Ou será que não?
P.S. - E que é feito da Barbie e do Ken, esses brinquedos obsoletos e preconceituosos da era pré-teconológica? Não desapareceram, não. Tornaram-se objecto de colecção para adultos endinheirados e, se calhar, também saudosistas de uma forma de viver a infância, de ser criança e de crescer que já não volta.
“A Barbie entra em casa apressada e com ar cansado, carregando vários sacos de compras e a pasta com o portátil: Fecha a porta e dirige-se imediatamente à cozinha para começar a preparar o jantar; o Ken está já sentado no sofá da sala, frente à televisão, com um ar tranquilo e a fazer zapping a ver se encontra algum jogo de futebol. Da cozinha a Barbie pergunta: «Então Ken, como foi o teu dia?»
«Ora! Igual aos outros!» – responde o Ken de mau humor para, logo a seguir, perguntar bem alto: «Então e o jantar ainda demora muito?»
Era perfeito, de facto. Mas como tudo o que é bom nesta vida, tinha um senão. Como continuar a brincar com a Barbie ou com o Ken a partir dos doze, treze anos, sem levantar suspeitas?
Tal questão ficou resolvida há alguns anos com a invenção e difusão do Telemóvel, espécie de brinquedo assexuado (quando vibra é que fico sempre com dúvidas...) que nos permite observar como rapazes e raparigas brincam às casinhas na era dita da tecnologia. Mantêm os telemóveis sempre à vista e junto a si para os contemplarem com uma ternura sôfrega e verdadeiro cuidado amoroso ou parental. Embevecidos, mostram aos amigos a última gracinha que descobriram no meio da parafrenália de aplicações com que vêm equipados. Os olhos brilham sempre que toca ou vibra, desviando-lhes a atenção de tudo o resto pois, como toda a boneca que se preze, exigem exclusividade. É ver a súbita ansiedade e preocupação de quem acabou de ouvir o choro... perdão, o toque do telemóvel, mas não lhe pode dar atenção, ali mesmo, naquele instante. É ver como é preciso pedir com muito jeitinho, em tudo quanto é espectáculo, para que as pessoas desliguem o telemóvel e, mesmo assim, há sempre uns quantos que tocam e gente que responde em surdina ou manda mensagens o tempo todo.
Na verdade é fascinante a sensação de ter quase o mundo todo contido num objecto com tamanho de brinquedo, ainda que seja um mundo virtual, de faz-de-conta, povoado de «amigos» mais ou menos fictícios, de imagens ilusórias, de relações transitórias e de palavras vazias de sentido. Um mundo de fantasia, tão irreal como o da Barbie e do seu eterno namorado Ken... o que não deixa de ser curioso. Agora, novos, velhos e assim-assim brincamos despudoradamente às casinhas nas redes sociais com o nosso telemóvel – como há uns anos atrás uma criança brincaria com a Barbie ou com o Ken. Estamos sempre “contactáveis” e passamos horas a “comunicar” com uma infinidade de gente. Seremos por isso melhores pessoas, mais dialogantes e, sobretudo, mais tolerantes? Estaremos mais e melhor preparados para viver em sociedade? O assustador crescimento dos números da violência em geral, e da doméstica em particular, até entre os mais jovens, aí está para confirmar que as coisas não melhoraram assim tanto.
Por isso, talvez o melhor seja adoptar o “optimismo” cínico de Candide (a personagem de Voltaire) e esperar que, com toda esta incessante “prática comunicativa”, venhamos a ter num futuro próximo o melhor dos mundos possíveis, que é como quem diz, uma geração de homens e mulheres de espírito arejado e livre dos preconceitos do passado. Um mundo em que mesmo a já tradicional falta de diálogo nas famílias e os velhos problemas de comunicação entre gerações sejam erradicados. Talvez um mundo em que falar à mesa durante o jantar seja apenas uma recordação de tempos obsoletos: digita-se antes um sms - de preferência com animação e fundo musical adequado - e envia-se sem demora para o filho adolescente que, sentado do outro lado da mesma, trata logo de responder e, se se armar em parvo, apanha uma traulitada do telemóvel projectado pelos ares para perceber melhor o que o pai quer dizer. E caso a esposa – ou a namorada - esteja armada em difícil envia-se um mms do Mike Tyson com a cara toda rebentada e fica logo a coisa resolvida sem que seja necessário pronunciar uma só palavra desagradável. Talvez um mundo em que estejamos todos em permanente comunicação com todos e, por isso mesmo, bem mais felizes. Afinal a comunicação na era da tecnologia é uma coisa fantástica. Ou será que não?
P.S. - E que é feito da Barbie e do Ken, esses brinquedos obsoletos e preconceituosos da era pré-teconológica? Não desapareceram, não. Tornaram-se objecto de colecção para adultos endinheirados e, se calhar, também saudosistas de uma forma de viver a infância, de ser criança e de crescer que já não volta.