Ainda estávamos no séc. XIX quando Almeida Garrett atirava à cara dos seus pares o seguinte discurso: E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infância, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?
Ora, desde então, o mundo mais não tem feito do que perseguir despudoradamente a riqueza como um valor absoluto e, sobretudo, como garantia segura de um poder económico e político também quase total sobre os outros. Que se saiba, ainda nenhuma nação até agora sequer se interrogou sobre a sua legitimidade (da ética é melhor nem falar) para (sobre)explorar os recursos naturais em países cujo povo morre literalmente à míngua de tudo à beira das ricas jazidas de matéria-prima.
Quando muito o mundo lá se lembra de vez em quando de fazer de conta que faz mea culpa, quanto mais não seja para baixar o tom de voz dos apelos e recriminações de muitas ONG's que, tantas vezes, apenas têm meios para prolongar por alguns dias a agonia de quem só conhece a fome, a sede e a doença. Até organizações internacionais como a ONU fazem de conta às vezes. Neste caso particular, faz de conta que não está atada de pés e mãos às vontades e caprichos dos países ricos e poderosos. Por isso lança de quando em vez umas iniciativas, subscritas sempre por quem precisa também de fazer de conta que se interessa ou preocupa com o triste destino dos pobres. É o caso dos chamados Objectivos de Desenvolvimento do Milénio que, até 2015, pretendem reduzir os números mundiais da pobreza, da fome ou da mortalidade materno-infantil. Quase às vésperas da grande cimeira internacional que vai discutir estas questões foi tornado público um relatório que avalia o cumprimento das metas e chega à conclusão de que existem “défices graves” em todas elas. Assim por alto, qualquer coisa como 1,4 mil milhões de almas continuam a tentar sobreviver com menos de 1,25 dólares diários (número definido pelo Banco Mundial como o limiar da pobreza), enquanto se estima (certamente por alto) que 925 milhões continuam a sofrer de fome crónica. Revela ainda que ajudas internacionais prometidas e efectivamente entregues são duas realidades bem distintas.
Assim, dentro de alguns dias, 139 chefes de estado e de governo chegarão com toda a pompa e circunstância a Nova Iorque para discutir quantas crianças famintas vão sobreviver por mais algum tempo. Durante os grandes banquetes celebratórios de tão histórica ocasião discursarão com voz grave, manifestando o seu mais profundo empenho em ajudar os pobres para que eles não morram de inanição. Concluirão depois com brindes do mais fino champanhe francês e apreciarão as iguarias mais raras e requintadas, enquanto aproveitam a oportuna ocasião para discutir os chorudos negócios que, no futuro próximo, os tornarão ainda mais ricos. Quando se levantarem da mesa muitos já nem sequer se lembrarão do motivo que os levou à Cimeira. Ou seja, tudo está bem quando acaba bem: se há muito mais pobres no mundo é porque há mais ricos também, milionários até. E, por enquanto, só isso é que interessa.