Todo e qualquer blogue que veicule informação, comentários e também rumores (em muitos casos, especialmente estes, o que é de lamentar) sobre o que deliberam, fazem ou dizem os nossos políticos e governantes nacionais ou locais e que aceitem comentários anónimos é um bom sítio para perceber o estado da arte da dimensão cívica dos nossos concidadãos. Esta parte do anonimato é muito importante porque funciona como uma espécie de desinibidor: é quando sabem que não serão identificadas que as pessoas parecem revelar verdadeiramente o que lhes vai na alma e, provavelmente, a verdadeira matéria de que é feita essa mesma alma. Dou apenas um exemplo, o da quase crónica e indignada queixa de que há lixo e detritos acumulados nas ruas. Pergunto eu: quem deixará os sacos de lixo ao lado do contentor? quem deitará sistematicamente os papéis, as pontas de cigarro, os sacos e embalagens para o chão? quem escarra nas calçadas, conspurcando-as?
Na verdade, quase ninguém está muito interessado em discutir as razões de fundo de uma qualquer decisão, apresentando argumentos válidos e consistentes, poucos parecem estar interessados em perceber a fundamentação do projecto a, b ou c, menos ainda em reconhecer que a obra x ou y, afinal, até nem foi assim tão má ideia quanto isso.
O que muitas vezes os tais comentários anónimos deixam perceber é que todos os políticos, independentemente da sua 'cor' partidária são uns pulhas sobre quem se pode e deve descarregar de forma sistemática e indiscriminada insultos e/ou acusações. É político, ou exerce um cargo público? Então nem sequer tem direito ao benefício da dúvida. É vigarista e mau carácter a priori. Tudo o que disser é de imediato rotulado de mentira para baixo, pois estou convencida que a maior parte das vezes nem sequer é escutado. Ora nada disto tem muito a ver com cidadania, muito menos com responsabilidade, e leva-me até a pensar que a democracia parece às vezes ter o dom de despertar o lado pior dos cidadãos que dela beneficiam. Concordo com Vasco Pulido Valente quando afirma numa das suas últimas crónicas do Público (5/9/2010) que o grande “feito” de Salazar foi ter criado uma espécie muito peculiar de cultura política que ainda hoje perdura no espírito de muitos, mesmo dos mais jovens e que nunca conheceram a ditadura: um povo que embora rosne entre dentes lá vai obedecendo, resignado, preocupado só com a sua vidinha de hoje, curvando o espinhaço perante os poderes e poderosos do momento, e lá no fundo sempre adepto da “mão forte” que “mete a canalha na ordem, como diz o comentador.
Pois que fazem estes cidadãos anónimos nos momentos cruciais das grandes decisões? Estarão eles bem informados sobre as deliberações, decisões e respectiva legislação? Conhecerão eles os seus direitos e também os seus deveres enquanto cidadãos? Procurarão ver para além do 'barulho das luzes' mediático, para além do horizonte imediato e díspare dos comentadores e dos 'opinion makers' do momento? Agirão, de forma sistemática e enquanto cidadãos devidamente organizados, contra tudo o que lhes parece incorrecto e não apenas movidos pelo mero interesse pessoal?
Não me parece que assim seja ou, pelo menos, não têm abundado os bons exemplos. Apenas iniciativas esporádicas. Quando chamados a participar no debate público e sobre a coisa pública que é, afinal, de todos nós, a maioria prefere faltar à chamada (veja-se o caso paradigmático e crónico das enormes taxas de abstenção em tudo quanto é eleição). Talvez se o debate fosse anónimo... Muitos nem compreendem que criticar tudo e todos apenas porque sim não leva a lado nenhum, nem nunca mudará coisa alguma. É preciso responsabilizar, exigir responsabilidade e ser-se responsável também. É aqui que, como cidadãos, falhamos e muito. É aqui que se revela claramente que usar a liberdade de expressão para criticar dizendo tudo o que nos vem à cabeça, só por si, não é de grande utilidade. É aqui que se percebe que não basta falar. É preciso também agir.
No fundo, esta atitude de crítica violenta, mas anónima, acaba por ser triplamente negativa. Por um lado leva a que os cidadãos não se reconheçam e muito menos se sintam representados pelos políticos que temos. Por outro lado, e em consequência directa disso mesmo, leva a uma atitude passiva, de alheamento e de não-participação. E o pior de tudo: leva a que, quem não cumpre as regras, quem é deliberadamente irresponsável ou corrupto, escape impune e com os bolsos cheios à custa da nossa passividade enquanto cidadãos.
Exemplo desse alheamento passivo é o projecto europeu dos Orçamentos Participativos. Á semelhança do que acontece em vários países europeus, há já uma década que, em Portugal, os cidadãos podem decidir (votar) sobre a forma como as câmaras municipais gastam uma parte do seu orçamento. E podem fazê-lo propondo eles próprios projectos de intervenção ou escolhendo as propostas que lhes parecem priritárias ou mais interessantes para a sua cidade/comunidade. Em todo o país, apenas doze municípios (ver aqui) aderiram até agora a esta nova forma de participação responsável por parte dos cidadãos e promotora, parece-me, de um debate saudável sobre os temas e situações que realmente nos afectam e importam. Em todo o Alentejo são apenas três os municípios que, até agora, aderiram ao projecto dos Orçamentos Participativos, como se pode conferir na página do observatório criado para os acompanhar e monitorizar: Alvito, Serpa e Castro Verde.
Nas autarquias por onde ando, vivo e trabalho – Évora e Estremoz – ainda não ouvi a ninguém uma única palavra sobre isto e estou, é bom de ver, a falar dos cidadãos, não dos políticos. Acredito que, para estes, a ideia de ter que partilhar com os cidadãos uma parte das suas decisões financeiras seja, no mínimo, desconfortável. Mas a nós, cidadãos que tanto criticamos (todas ou quase todas) as decisões tomadas pelos governantes municipais, que nos impede afinal de exigir aquilo que é um direito nosso: participar directamente nas decisões de investimento e gestão da nossa autarquia? Essa passagem das palavras à acção é que seria, na verdade, e entre outras mais que também são possíveis, uma atitude de maturidade cívica e democrática que, se calhar, levaria muitos políticos a pensar duas vezes antes de tomar certas decisões. Aí sim, seríamos cidadãos e já não 'cidadões' como tantas vezes parecemos ser.