segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"A poesia também são notícias que você dá às pessoas de pequenos factos."

Ao poeta brasileiro José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, foi atribuído em Maio deste ano o Prémio Camões.

Numa entrevista recente (Pública, 19/9/2010), entre muitas outras coisas, falou sobre a forma como, desde sempre, escreve poesia: “Veja-me, hoje estou aqui em casa, tenho mesa, tenho escritório, tenho tudo. Mas muitas vezes estou na rua, me ocorre uma coisa, tiro um papel do bolso, anoto. Por exemplo, o Poema Sujo grande parte dele eu fiz andando pela rua. Concebendo. Depois ia para casa e escrevia.”
(...)
“Costumo dizer que o meu poema nasce de um espanto, de alguma coisa que inesperadamente me surpreende e me revela um lado da vida que eu não tinha visto, não tinha percebido. Não precisa ser nada de extraordinário... É um cheiro de uma tangerina, o meu filho está abrindo uma tangerina na sala e, de repente, aquilo me leva para um estado... Eu já senti cheiro de tangerina a vida inteira mas de repente fico naquele estado porque descubro algo que me leva a elaborar. Esse poema a que voce se refere [Acidente na sala]: eu estava aqui na sala vendo televisão e tocou o telefone. Levantei-me abruptamente e aí o meu osso, o fémur bateu no ilíaco, no osso da bacia, traaac, deu um tranco. Eu fui atender, falei, voltei, me sentei e pensei: “Mas eu tenho osso.”

Teoricamente, todos nós sabemos que temos osso, em esqueleto. Uma coisa é a teoria, outra coisa é você sentir o osso bater um no outro. Aí perguntei: então tem osso mesmo de verdade? Mas osso pensa? Quem é que está se surpreendendo com esse osso? Sou eu? Tem alguma coisa a ver com ele? Osso pergunta? Osso não pergunta? Quem pergunta? Então aí começou o poema que eu depois escrevi. Nasce assim. O título é Acidente na sala. A poesia também são notícias que você dá às pessoas de pequenos factos. Não é: destruíram as torres gémeas, não é grandes notícias, não. É um osso bateu no outro, a notícia da poesia é essa: fui assaltado por um jasmineiro no jardim da casa da Cláudia [Ahimsa, sua companheira e também poeta], fui assaltado de noite, com as armas que ele tinha, que é o cheiro dele... Então eu quero informar vocês que fui atacado por um jasmineiro. Essas são as notícias que o poeta dá para as pessoas.” (itálico meu)
Manuscrito do poema de Ferreira Gullar "Uma Corola" do livro Em alguma parte alguma