Ao poeta brasileiro José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar, foi atribuído em Maio deste ano o Prémio Camões.
Numa entrevista recente (Pública, 19/9/2010), entre muitas outras coisas, falou sobre a forma como, desde sempre, escreve poesia: “Veja-me, hoje estou aqui em casa, tenho mesa, tenho escritório, tenho tudo. Mas muitas vezes estou na rua, me ocorre uma coisa, tiro um papel do bolso, anoto. Por exemplo, o Poema Sujo grande parte dele eu fiz andando pela rua. Concebendo. Depois ia para casa e escrevia.”
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“Costumo dizer que o meu poema nasce de um espanto, de alguma coisa que inesperadamente me surpreende e me revela um lado da vida que eu não tinha visto, não tinha percebido. Não precisa ser nada de extraordinário... É um cheiro de uma tangerina, o meu filho está abrindo uma tangerina na sala e, de repente, aquilo me leva para um estado... Eu já senti cheiro de tangerina a vida inteira mas de repente fico naquele estado porque descubro algo que me leva a elaborar. Esse poema a que voce se refere [Acidente na sala]: eu estava aqui na sala vendo televisão e tocou o telefone. Levantei-me abruptamente e aí o meu osso, o fémur bateu no ilíaco, no osso da bacia, traaac, deu um tranco. Eu fui atender, falei, voltei, me sentei e pensei: “Mas eu tenho osso.”
Teoricamente, todos nós sabemos que temos osso, em esqueleto. Uma coisa é a teoria, outra coisa é você sentir o osso bater um no outro. Aí perguntei: então tem osso mesmo de verdade? Mas osso pensa? Quem é que está se surpreendendo com esse osso? Sou eu? Tem alguma coisa a ver com ele? Osso pergunta? Osso não pergunta? Quem pergunta? Então aí começou o poema que eu depois escrevi. Nasce assim. O título é Acidente na sala. A poesia também são notícias que você dá às pessoas de pequenos factos. Não é: destruíram as torres gémeas, não é grandes notícias, não. É um osso bateu no outro, a notícia da poesia é essa: fui assaltado por um jasmineiro no jardim da casa da Cláudia [Ahimsa, sua companheira e também poeta], fui assaltado de noite, com as armas que ele tinha, que é o cheiro dele... Então eu quero informar vocês que fui atacado por um jasmineiro. Essas são as notícias que o poeta dá para as pessoas.” (itálico meu)
Manuscrito do poema de Ferreira Gullar "Uma Corola" do livro Em alguma parte alguma |